sexta-feira, 17 de julho de 2009

A Reflexão Filosófica

Reflexão significa movimento de volta sobre si mesmo ou movimento de retorno a si mesmo. A reflexão é o movimento pelo qual o pensamento volta-se para si mesmo, interrogando a si mesmo.

A reflexão filosófica é tida como radical porque é um movimento de volta do pensamento sobre si mesmo para conhecer-se a si mesmo, para indagar como é possível o próprio pensamento. Não somos, porém, somente seres pensantes. Somos também seres que agem no mundo, que se relacionam com os outros seres humanos, com os animais, as plantas, as coisas, os fatos e acontecimentos, e exprimimos essas relações tanto por meio da linguagem quanto por meio de gestos e ações.

A reflexão filosófica também se volta para essas relações que mantemos com a realidade circundante, para o que dizemos e para as ações que realizamos nessas relações. A reflexão filosófica organiza-se em torno de três grandes conjuntos de perguntas ou questões:

1. por que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos e fazemos o que fazemos?

2. o que queremos pensar quando pensamos, o que queremos dizer quando falamos, o que queremos fazer quando agimos? Isto é, qual é o conteúdo ou o sentido do que pensamos, dizemos ou fazemos?

3. para que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos, fazemos o que fazemos? Isto é, qual a intenção ou a finalidade do que pensamos, dizemos e fazemos?

Essas três questões podem ser resumidas em: o que é pensar, falar e agir? E elas pressupõem a seguinte pergunta: nossas crenças cotidianas são ou não um saber verdadeiro, um conhecimento? A atitude filosófica inicia-se indagando: o que é?, como é?, por que é?, dirigindo-se ao mundo que nos rodeia e aos seres humanos que nele vivem e com ele se relacionam. São perguntas sobre a essência, a significação ou a estrutura e a origem de todas as coisas.

A reflexão filosófica, por sua vez, indaga: por quê?, o quê?, para quê?, dirigindo-se ao pensamento, aos seres humanos no ato da reflexão. São perguntas sobre a capacidade e a finalidade humanas para conhecer e agir.

A filosofia moral de Kant

Anthony Kenny
Universidade de Oxford

Assim como a primeira Crítica estabeleceu criticamente os princípios sintéticos a priori da razão teórica, a Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785) estabelece criticamente os princípios sintéticos a priori da razão prática. Trata-se de uma breve e eloquente apresentação do sistema moral de Kant.

Na moral, o ponto de partida de Kant é o de que o único bem irrestrito é uma vontade boa. Talento, carácter, autodomínio e fortuna podem ser usados para alcançar maus fins; até mesmo a felicidade pode corromper. O que constitui o bem de uma vontade boa não é o que esta alcança; a vontade boa é um bem em si e por si.

Ainda que por um desfavor especial do destino, ou pelo apetrechamento avaro duma natureza madrasta, faltasse totalmente a esta boa vontade o poder de fazer vencer as suas intenções, mesmo que nada pudesse alcançar a despeito dos seus maiores esforços, e só afinal restasse a boa vontade […] ela ficaria brilhando por si como uma jóia, como coisa que em si tem o seu pleno valor.

Não foi para procurar a felicidade que os seres humanos foram dotados de vontade; para isso, o instinto teria sido muito mais eficiente. A razão foi-nos dada para originar uma vontade boa não enquanto meio para outro fim qualquer, mas boa em si. A vontade boa é o mais elevado bem e a condição de possibilidade de todos os outros bens, incluindo a felicidade.

Que faz, pois, uma vontade ser boa em si? Para responder a esta questão, temos de investigar o conceito de dever. Agir por dever é exibir uma vontade boa face à adversidade. Mas temos de distinguir entre agir de acordo com o dever e agir por dever. Um merceeiro destituído de interesse pessoal ou um filantropo que se deleite com o contentamento alheio podem agir de acordo com o dever. Mas acções deste tipo, por melhores e por mais agradáveis que sejam não têm, de acordo com Kant, valor moral. O nosso carácter só mostra ter valor quando alguém pratica o bem não por inclinação mas por dever — quando, por exemplo, um homem que perdeu o gosto pela vida e anseia pela morte continua a dar o seu melhor para preservar a sua própria vida, de acordo com a lei moral.

A doutrina de Kant é, a este respeito, completamente oposta à de Aristóteles, que defendia não serem as pessoas realmente virtuosas desde que o exercício da virtude fosse contra a sua natureza; a pessoa verdadeiramente virtuosa gosta decididamente de praticar actos virtuosos. Para Kant, por outro lado, é a dificuldade de praticar o bem que é a verdadeira marca da virtude. Kant dá-se conta de ter estabelecido padrões intimidadores de conduta moral — e está perfeitamente disposto a considerar a possibilidade de nunca ter havido, de facto, uma acção levada a cabo unicamente com base na moral e em função do sentido do dever.

O que é, pois, agir por dever? Agir por dever é agir em função da reverência pela lei moral; e a maneira de testar se estamos a agir assim é procurar a máxima, ou princípio, com base na qual agimos, isto é, o imperativo ao qual as nossas acções se conformam. Há dois tipos de imperativos: os hipotéticos e os categóricos. O imperativo hipotético afirma o seguinte: se quisermos atingir determinado fim, age desta ou daquela maneira. O imperativo categórico diz o seguinte: independentemente do fim que desejamos atingir, age desta ou daquela maneira. Há muitos imperativos hipotéticos porque há muitos fins diferentes que os seres humanos podem propor-se alcançar. Há um só imperativo categórico, que é o seguinte: "Age apenas de acordo com uma máxima que possas, ao mesmo tempo, querer que se torne uma lei universal".

Kant ilustra este princípio com vários exemplos, dos quais podemos mencionar dois. O primeiro é este: tendo ficado sem fundos, posso cair na tentação de pedir dinheiro emprestado, apesar de saber que não serei capaz de o devolver. Estou a agir segundo a máxima "Sempre que pensar que tenho pouco dinheiro, peço dinheiro emprestado e prometo pagá-lo, apesar de saber que nunca o devolverei". Não posso querer que toda a gente aja segundo esta máxima, pois, nesse caso, toda a instituição da promessa sucumbiria. Assim, pedir dinheiro emprestado nestas circunstâncias violaria o imperativo categórico.

Um segundo exemplo é este: uma pessoa que esteja bem na vida e a quem alguém em dificuldades peça ajuda pode cair na tentação de responder "Que me interessa isso? Que todos sejam tão felizes quanto os céus quiserem ou quanto o conseguirem; não o prejudicarei, mas também não o ajudo". Esta pessoa não pode querer que esta máxima seja universalizada porque pode surgir uma situação na qual ela própria precise do amor e da simpatia de outras.

Estes casos ilustram duas maneiras diferentes a que o imperativo categórico se aplica. No primeiro caso, a máxima não pode ser universalizada porque a sua universalização implicaria uma contradição (se ninguém cumprir as suas promessas, as próprias promessas deixam de existir). No segundo caso, a máxima pode ser universalizada sem contradição, mas ninguém poderia racionalmente querer a situação que resultaria da sua universalização. Kant afirma que os dois casos correspondem a dois tipos diferentes de deveres: deveres estritos e deveres meritórios.

Nem todos os exemplos de Kant são convincentes. Ele defende, por exemplo, que o imperativo categórico exclui o suicídio. Mas, por mais que o suicídio seja um mal, nada há de autocontraditório na perspectiva do suicídio universal; e uma pessoa suficientemente desesperada pode considerá-lo um fim a desejar piedosamente.

Kant oferece uma formulação complementar do imperativo categórico. "Age de tal modo que trates sempre a humanidade, quer seja na tua pessoa quer na dos outros, nunca unicamente como meios, mas sempre ao mesmo tempo como um fim." Kant pretende, apesar de não ter convencido muitos dos seus leitores, que este imperativo é equivalente ao anterior e que permite retirar as mesmas conclusões práticas. Na verdade, é mais eficaz do que o anterior para expulsar o suicídio. Tirar a nossa própria vida, insiste Kant, é usar a nossa própria pessoa como um meio de acabar com o nosso desconforto e angústia.

Como ser humano, afirma Kant, não sou apenas um fim em mim mesmo, sou um membro do reino dos fins — uma associação de seres racionais sob leis comuns a todos. A minha vontade, como se disse, é racional na medida em que as suas máximas puderem transformar-se em leis universais. A conversa desta afirmação diz que a lei universal é a lei feita por vontades racionais como a minha. Um ser racional "só está sujeito a leis feitas por si mesmo e que, no entanto, sejam universais". No reino dos fins, todos somos igualmente legisladores e súbditos. Isto faz lembrar a vontade geral de Rousseau.

Kant conclui a exposição do seu sistema moral com um panegírico à dignidade da virtude. No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Se algo tem um preço, pode ser trocado por qualquer outra coisa. O que tem dignidade é único e não pode ser trocado; está além do preço. Há dois tipos de preços, afirma Kant: o preço venal, que está relacionado com a satisfação da necessidade; e o preço de sentimento, relacionado com a satisfação do gosto. A moralidade está para lá e acima de ambos os tipos de preço.

A "moralidade, e a humanidade enquanto capaz de moralidade, são as únicas coisas que têm dignidade. A destreza e a diligência no trabalho têm um preço venal; a argúcia de espírito, a imaginação viva e as fantasias têm um preço de sentimento; pelo contrário, a lealdade nas promessas, o bem querer fundado em princípios (e não no instinto) têm um valor intrínseco." As palavras de Kant ecoaram ao longo do século XIX e ainda emocionam muitas pessoas hoje em dia.

Anthony Kenny

Retirado de História Concisa da Filosofia Ocidental, de Anthony Kenny (Temas e Debates, 1999).

Popularização da Filosofia

Praticamente todos os estudantes tiveram como disciplina escolar a filosofia, mas pouquíssimos continuaram dedicando-se a estes estudos ou desenvolveram alguma profissão ligada ao mundo filosófico. Isto porque há uma tendência pré-conceituada de que filosofia é um tema sem função prática e concreta, que não é importante no nosso mundo materialista moderno. Ledo engano, a filosofia é importantíssima hoje em dia como foi e será no futuro, seja qual for o caminho que nossa civilização tomar, uma vez que se originou, suporta-se e se desenvolve no poder de pensar do ser humano. O filosofar é intrínseco do homem, fazendo parte de sua vida, não podendo ser separado de sua existência.

A filosofia é a essência de todo o nosso pensar e conseqüentemente de nosso agir, não podendo assim estar fora de nosso cotidiano. A reflexão filosófica está presente em todos os atos de decisão que tomamos, mesmo que inconscientemente, mesmo que não percebamos. Qualquer atitude que tomamos é baseada em decisão que por sua vez levou em consideração nosso poder de pensar, refletir, ponderar, ou seja filosofar.

A filosofia surgiu na antiguidade grega e era uma forma de procura de paz interior, posteriormente ficou restrita a iniciados, em universidades. No século passado ganhou as clínicas psiquiátricas com a finalidade de curar os desajustes emocionais. Até então a filosofia vem sendo usada por psiquiatras e psicólogos como exercício de cura de enfermidades mentais, são os chamados filósofos clínicos. Na religião também vemos a filosofia ter seu espaço importantíssimo, utilizada que é para decifrar os caminhos da fé, das crenças e do pensar religioso dos homens. É a filosofia religiosa dando impulso à compreensão do místico, das crenças, da força criadora etc.

Já a necessidade de se entender a complexidade da vida moderna cada vez mais regida pelos reflexos do fenômeno da globalização, tem trazido inquietude mental à milhões de pessoas que são expostas a informações e conceitos que não lhes dizem respeito diretamente e que acabam sendo incorporadas a sua cultura, regendo suas vidas. Isto está trazendo a necessidade de reflexão sobre o cotidiano dos novos tempos, do significado desta vida moderna, surgindo dessa forma campo propício ao ressurgimento da filosofia, mas desta vez para o questionamento filosófico sobre o nosso "modus vivendi", a nossa vida agora. Afinal, o fenômeno da globalização tem-nos afastado da nossa natureza humana, já que a tecnologia avançada e as máquinas estão tomando nosso espaço com milhões de desempregados pela "robotização", milhões sofrem pelos conflitos gerados pela rapidez de mudança dos costumes propiciada pela comunicação instantânea e a insatisfação de termos que fazer coisas impostas pela mídia importada de países economicamente mais fortes. É a insatisfação muitas vezes inconsciente gerada pela imposição da cultura alheia. Isto propicia campo ao surgimento desta nova forma de filosofia, a filosofia moderna do cotidiano.

Assim, por este e outros inúmeros motivos surgiram na França os famosos "cafés filosóficos" nos anos noventa do século passado, alastrando-se por várias partes do mundo. Nestes locais pessoas de todas as faixas etárias e das mais variadas profissões discutem os problemas cotidianos, gerando um excelente e eficaz exercício de reflexão filosófica, que muitas vezes dão origem a ações ou movimentos de cidadania. Em algumas universidades já há uma postura mais aberta em relação a filosofia, propiciando a divulgação de obras filosóficas mais acessíveis ao público leigo com divulgação do tema ao público em geral.

Portanto, ao contrario do que muitos pensam, a filosofia está presente em nosso dia-dia e é de suma importância para o exercício da cidadania, pois sem reflexão filosófica nossas atitudes podem ser direcionadas por regras impostas e sem sentido, comprometendo nossa consciência com prejuízos inclusive psíquicos. A neurose sem dúvida é um dos reflexos de nossa existência impensada. Dessa forma, a filosofia está cada vez mais viva e deve fazer parte de nosso mundo como ferramenta imprescindível para uma postura crítica perante as situações que se apresentam, aliás cada dia mais complexas e difíceis de se entender, daí porque a popularização da filosofia como ciência e modo de reflexão da vida moderna deve ser incentivada e desenvolvida por todos. Pensem nisso.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Rousseau: A arte da Filosofia, Literatura e Educação

"É preciso estudar a sociedade pelos homens, e os homens pela sociedade: os que quiserem tratar separadamente da política e da moral nunca entenderão nada de nenhuma das duas"

Jean-Jacques Rousseau, Emílio ou da Educação

A vida de Rousseau

Tão importante quanto a descrição proposta do Emílio de Rousseau, é o conhecimento de sua vida para que se possa demarcar sua posterioridade nas áreas de política, filosofia, psicologia infantil, literatura, sociologia, entre outras.

Jean Jacques Rousseau foi um dos mais considerados pensadores europeus no século XVIII. Sua obra inspirou reformas políticas e educacionais. Nasceu em Genebra, na Suíça em 28 de junho de 1712 e faleceu em Ermenonville, nordeste de Paris, França em 2 de julho de 1778. Foi filho de Isaac Rousseau, relojoeiro de profissão, com antepassados protestantes e apesar da profissão, nunca chegou a pertencer à aristocracia. Era um pouco mais pobre do que os demais irmãos em virtude de ter que dividir a herança com mais quatorze irmãos. Casou-se com Suzanne Bernard, filha de um pastor de Genebra. A mãe de Rousseau viera a falecer poucos dias após seu nascimento. Rousseau tinha um irmão mais velho, François, que era mais velho sete anos e ainda jovem abandonou a família.

Rousseau foi criado na infância por uma irmã de seu pai e uma ama. Num certo momento, perdeu também o pai porque este, no ano de 1722, desentendendo-se com um cidadão de certa influência, ferindo- o no rosto num encontro de rua. Este incidente obrigou a seu pai deixar Genebra para não ser injustamente preso.

Junto ao seu irmão, Rousseau ficou com o tio Gabriel Bernard, engenheiro militar que era irmão de sua mãe e casado com uma irmã de seu pai.

Rousseau não teve educação regular, senão por certos períodos e não freqüentou nenhuma universidade. Era um autodidata. Ainda na casa paterna leu muito; lia para seu pai enquanto este trabalhava em casa nos misteres de relojoeiros, os livros deixados por sua mãe e pelo pastor, seu avô materno. Juntamente a estas leituras, Rousseau acrescentará muitas outras, especialmente livros de história.

Sob tutela de seu tio, foi enviado para Bossey, a fim de estudar com o pastor Lambercier.

Aos 12 anos, de volta a Genebra, passa alguns anos na casa de um tio (outro), aprendendo a desenhar com um primo. Nessa época pensou até em ser ministro evangélico por admirar a atividade, mas os recursos econômicos de que dispusera não eram suficientes para continuar os seus estudos nesse sentido. Assim, o sentimento de inferioridade social começa a ser alternante no caráter de Rousseau. Aos 14 anos será aprendiz na casa de um gravador e aos 16 anos de idade, foge da cidade para escapar aos maus tratos do patrão. De 1728 a 1742 vagueia e trabalha pelo sul da França, pelo norte da Itália, pela Suíça, lendo muito, ensinando música, vivendo de vários empregos, ao sabor das circunstâncias e de seus amores.

Em meio a muitas humilhações e angústias pelas quais passou, Rousseau tem melhor sorte ao ter amizade com o filósofo Condillac (1715-1780) e com Denis Diderot (1713-1784) que encomendou–lhe artigos sobre música para a enciclopédia.

Em 1745, liga-se a Thérèse Levasseur, com quem tem cinco filhos, ambos direcionados a orfanatos, porque Rousseau achava que não poderia cuidar deles sendo pobre e doente. Presencia-se em Rousseau a marca do remorso presente no resto de sua vida e para livra-se dele, preocupava-se sempre em encontrar justificativas.

Em 1746, com a morte de seu pai, Rousseau recebe uma pequena herança e pode sobreviver folgadamente.

Em 1749, ao visitar Diderot na prisão (estava preso devido a sua obra Lettre Sur lês aveugles), Rousseau leu o anúncio de um concurso da Academia de Dijon e sentiu grande emoção ante a perspectiva de concorrer com êxito. A questão era se a restauração das ciências e das artes tinha tendido a purificar a moral. Estimulado pelo amigo, enviou um trabalho. Seu ensaio, conhecido sob o título abreviado de Discurso sobre as ciências e as artes, ganhou o primeiro prêmio e sua publicação ao final do ano seguinte o tornou famoso.

No Discurso sobre as ciências e as artes (1750), Rousseau articulou o tema fundamental que corre através de sua filosofia social: o conflito entre as sociedades modernas e a natureza humana e ressalta o paradoxo da superioridade do estado selvagem, proclamando a "volta da natureza". Ao mesmo tempo denuncia as artes e as ciências como corruptoras do homem.

Nessa ocasião, Rousseau caiu doente e desenganado por médicos e pensa em reformular sua vida adaptando-se a doença e afastando-se da agitação da vida social.

A Academia de Dijon propõe novo trabalho, desta vez sobre a origem da desigualdade entre os homens. Para escrevê-lo, passeando nos bosques em Saint Germin, procura recriar na mente a imagem do homem natural. Desenvolveu o tema de que da própria civilização vinham os males que afligiam o homem civilizado. Considera os homens iguais no estado natural, quando viviam isoladamente como selvagens, e que a civilização se encarrega de introduzir a desigualdade. Embora sem êxito, sem o prêmio, é seu segundo escrito sensacional. Sua fama estava assegurada.

Em 1756, Rousseau escreve uma carta a Voltaire, dando-lhe conselhos sobre sua visão negativa do mundo. Rousseau diz que o livro "Cândido ou o otimismo" foi uma resposta sarcástica a seus pontos de vista otimistas, expressos naquela carta. Em 1756 também, põe-se a escrever o romance A nova Heloísa, típico de sua personalidade romântica.

Rousseau, um 1762 publica um de seus mais conhecidos e influentes trabalhos: Emílio ou da Educação e Do Contrato Social.

Os dois livros, após sua publicação, foram considerados ofensivos a autoridade e assim Rousseau inicia um período difícil de perseguições políticas. Seus problemas não são mais com amigos ou amantes, mas com o parlamento. Refugia-se em Neuchâtel. Voltaire, através de um panfleto critica Rousseau, magoando-o fortemente. Assim, pôs-se a escrever As Confissões, relatando toda a sua vida e pensamento, sendo assim uma espécie de auto-biografia sintetizando-o como homem, filósofo, educador e romântico.

Em seus últimos anos de vida, Rousseau escreve os Devaneios de um caminhante solitário, com descrições da natureza e dos sentimentos humanos. Falece em Ermenonville e é enterrado na Ilha de Choupos.

O pensamento de Rousseau

Rousseau é filósofo iluminista precursor do romantismo no Séc. XIX, e apesar de ser iluminista, era um crítico ao movimento.

Sendo característico do iluminismo, pensava que a sociedade havia pervertido o homem natural que vivia harmoniosamente com a natureza, livre de egoísmo, cobiça, possessividade e ciúme.

Rousseau recebe várias críticas de Voltaire que diz: ninguém jamais pôs tanto engenho em querer nos converter em animais " e que ler Rousseau faz nascer desejos de caminhar em quatro patas", mas a proposta rousseaniana é o combate aos abusos e não repudiar aos valores humanos.

A sua teoria política, é sob vários aspectos uma síntese de Hobbes e Locke. O ferro e o trigo civilizaram o homem e arruinaram a raça humana.

Rousseau não busca retornar o homem a primitividade, ao estado natural, mas ele busca meios para se diminuir as injustiças que resultam da desigualdade social. Indica assim alguns caminhos:

1.º - igualdade de direitos e deveres políticos ou o respeito por uma "vontade geral";

2.º - educação pública para todas as crianças baseadas na devoção pela pátria e austeridade moral.

3.º - um sistema econômico e financeiro combinados com os recursos da propriedade pública com taxas sobre as heranças e o fausto.

A pedagogia de Rousseau

Os pressupostos básicos de Rousseau a respeito da educação eram a crença na bondade natural do homem, e atribuir à civilização a responsabilidade pela origem do mal.

A educação deveria levar o homem a agir por interesses naturais e não por imposição de regras exteriores artificiais, pois só assim o homem poderia ser dono de si próprio.

Outro aspecto da educação natural está em não aceitar uma educação intelectualizada, levando ao ensino formal e livresco. O homem não é constituído apenas por intelecto, pois suas disposições primitivas, tais como os sentidos, os instintos, as emoções e os sentimentos existentes do pensamento elaborado são dimensões mais dignas de confiança.

Rousseau utiliza-se de novas idéias para combater as que prevaleciam em sua época há muito tempo, principalmente a de que a educação da criança deveria ser voltada aos interesses do adulto e da vida adulta. Introduz a concepção de que a criança é um ser com características próprias, e desse modo não podia ser vista como um adulto ou a partir de seu pensamento.

Com estas idéias, derrubou concepções vigentes que pregavam ser a educação, o processo pelo qual a criança adquire seus conhecimentos, atitudes, hábitos armazenados pela civilização, sem transformações.

Cada fase da vida, para Rousseau, tem suas características próprias. O homem e a sociedade modificam-se, e a educação é fundamental para a necessária adaptação a essas modificações.

Rousseau afirma que a educação não vem de fora, é a expressão livre da criança no seu contato com a natureza.

No contexto de sua época, Rousseau formulou princípios educacionais que permanecem até os nossos dias, principalmente quando afirmava: que a verdadeira finalidade da educação era ensinar a criança a viver e aprender a exercer a liberdade. Pode-se afirmar que as idéias de Rousseau influenciam diferentes correntes pedagógicas, principalmente as tendências não diretivas, no século XX.

Assim, podemos enfatizar que na verdade Rousseau é ao mesmo tempo amado e temido: sua obra e mesmo sua pessoa são fascinantes para uma época em que um novo homem se abria para novos tempos, em que um eu solitário e muito puro se abria para o futuro e sobretudo para a alma romântica que estava nascendo.

"Educação pública, educação privada, formar o homem ou o cidadão? Questões a partir do Emílio de Rousseau"

Rousseau, a partir da questão acima, propõe rever a contradição existente entre o homem e o cidadão, pois, segundo ele, não é possível a existência de um homem e um cidadão, pois nestas duas pessoas, existem contrapontos, sendo tipos opostos e excludentes.

No plano filosófico geral de Rousseau, a contradição homem/cidadão se dá através da contradição existente entre o homem e a sociedade.

Para Rousseau, o homem nasce bom e a sociedade o corrompe, ou seja, o homem através da história torna-se mau , com o objetivo de lesar o outro.

O homem primitivo era bom porque era natural.

A partir da questão da formação do homem ou do cidadão, como os homens poderiam voltar a ser bons?

Rousseau propõe sua solução política através do Contrato Social e a solução pedagógica é apresentada no Emílio.

A maldade existente entre os homens está presente no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Nesse discurso Rousseau divide a evolução do homem em três estágios diferentes que remetem aos seguintes:

1.º Estado – homem natural
2.º Estado – homem selvagem
3.º Estado – homem civilizado

O homem natural é um animal que se integra a natureza e a mesma é generosa para com o homem (instinto e sensação), que vive isoladamente por vontade própria, independente do semelhante, mas dependente da natureza, de onde retira tudo o que precisa e é guiado pelo instinto da conservação (preocupação consigo).

O homem selvagem, que remete às sociedades indígenas já tem um interesse particular, marcas, vícios, conflitos a partir da consciência moral, de onde nasce a virtude.

O homem civilizado tem seus interesses particulares fortalecidos e entram em conflito pois sua consciência moral é abafada existindo a oposição de interesses.

Assim, o homem tornou-se egocêntrico e individualista, tornou-se um homem natural no mau sentido.

A contradição homem/cidadão no Emílio está presente num plano de princípios. Seu livro não trata de uma proposta de educação, mas sim de uma filosofia da educação com conceitos e idéias de modo abstrato do homem em geral.

Emílio é um personagem fictício para ilustrar os princípios de Rousseau em seu ensaio pedagógico sob forma de romance.

Como já foi relatado no início da discussão, a preocupação de Rousseau centra-se no objetivo de optar entre formar o homem ou o cidadão, na impossibilidade de haver os dois ao mesmo tempo já que são antagônicos e também são dois tipos puros, conceituais existentes no plano de princípios.

Para Rousseau, o homem, dito homem natural forma-se através da educação doméstica ou privada no seio da família. É um ser inteiro, de existência absoluta, relacionando-se consigo mesmo e tudo é para si mesmo. Como exemplo, pode-se citar o homem natural de que Rousseau trata no "Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens".

O cidadão é formado através do projeto educacional público assistido pelo Estado. O cidadão é uma fração, existindo na relação em um todo, tendo uma existência relativa. Rousseau exemplifica o cidadão como a mãe espartana que, diante de uma guerra é informada sobre a morte de seus filhos no decorrer da mesma, pouco importando-se com o fato, mas preocupando se sim com a vitória de sua pátria, demonstrando-se uma verdadeira cidadã.

A partir destas descrições, quem seria o "homem civilizado" do presente em relação a estes dois tipos (homem e cidadão)?

Na verdade, ele não seria nem um nem outro, pois a educação da sociedade não formaria nenhum deles, mas sim um ser misto.

Para a conciliação destes dois seres é necessário o conhecimento do homem natural (por exemplo, a criança, que é um) e assim, o cidadão somente poderá existir a partir deste homem natural, o qual será originado pela natureza e para vê-lo, a história individual será o caminho a seguir.

A origem e o nascimento da Filosofia e sua herança para o mundo ocidental.

I – A origem da palavra Filosofia é grega e é composta por:
Philo: amizade, amor fraterno
Sophia: sabedoria
Atribui-se a Pitágoras a invenção da palavra, no sec. V a. C.. Significa amor e respeito pela sabedoria, desejo pelo saber, vontade de saber.
Com o tempo esse filosofia passou a designar não apenas amor à sabedoria, mas um tipo especial de sabedoria: aquela que nasce do uso metódico da razão.

II – A origem da Filosofia
Alguns pensadores gregos, admirados com a realidade e insatisfeitos com as explicações dadas pela tradição e mitos, começaram a fazer perguntas e a buscar respostas. Esses pensadores perceberam que a verdade do mundo e do homem não era algo misterioso e secreto, que precisasse ser explicada apenas pelos deuses e mitos.
Os pensadores acreditaram que o mundo podia ser conhecido por meio do pensamento e da razão e que a verdade podia ser ensinada e aprendida.
A Filosofia é uma instituição cultural tipicamente grega, que surgiu em um dado momento histórico, a partir de determinadas condições históricas e tornou-se o modo de pensar do mundo ocidental, inicialmente na Europa e, com a colonização, expandiu-se para a América e o mundo.


III – Nascimento
A Filosofia nasce na Antiguidade, no final do sec. VII a.C, com Tales de Mileto, nas colônias gregas da Ásia menor, em uma cidade chamada Mileto.
Os pensadores perguntavam sobre o mundo questões como:
Por que tudo muda?
Por que se nasce e morre?
Por que tudo se multiplica?
Por que o dia vira noite?
O que é a água, o fogo? Como surgiu? De que é feito?
Por que semelhantes dão origem a semelhantes?
De onde vêm os seres? Para onde vão os seres?
Em um período anterior ao surgimento dos primeiros filósofos, todos esses temas eram explicados pela mitologia, lendas, tradições. Era um momento em que o homem estava fortemente ligado à terra, às arvores, aos rios, às montanhas, à natureza. Não se fazia distinção entre o real e o irreal. A explicação de toda realidade universal era baseada na imaginação, não existia a razão.
É preciso lembrar que o pensamento e as instituições humanas refletem as condições sociais, econômicas e históricas de uma sociedade em uma determinada época. Na Grécia daquele momento, as explicações sobre as origens do mundo e da natureza baseadas na mitologia já não satisfaziam.
A Filosofia surge então como a busca de uma explicação racional e ordenada do mundo ou da natureza: cosmologia.
Cosmo: ordem e organização do mundo
Logia: pensamento racional, conhecimento
Mas por que e como a Filosofia surgiu naquele momento e na Grécia?
O que tornou possível o surgimento da Filosofia na Grécia no final do sec. VII antes de Cristo? Quais as condições sociais, políticas, econômicas e históricas que permitiram o surgimento da Filosofia?

IV – As condições históricas que possibilitaram o surgimento da Filosofia na Grécia
1. As viagens marítimas levaram à desmitificação do mundo, revelaram que não existiam deuses, monstros, titãs. O homem começou a conhecer concretamente o mundo e não havia os personagens dos mitos nos lugares esperados.
2. Invenção do calendário: o tempo deixou de ser incompreensível e divino, passou a ter dias, anos, estações.
3. Invenção da moeda permitiu uma forma abstrata de troca. A troca não se realiza através de uma coisa concreta. Surge uma forma abstrata e genérica de troca.
4. Surgimento da vida urbana: predomínio do comércio e artesanato. Surge uma classe comerciante que, para se contrapor a aristocracia da época, vai apoiar as artes, as técnicas, o conhecimento e assim a Filosofia.
5. Invenção da escrita alfabética revela o crescimento da capacidade de abstração, juntamente com o calendário e a moeda. O alfabeto é racional e pode ser usado por todos.
6. Invenção da política: surge a lei como expressão da vontade coletiva humana e o direito de cada um se expressar racionalmente, surge a cidade (polis) como novo espaço público e surge a política, que valoriza o ser o humano e o pensamento. Antes o discurso era mítico, sagrado, misterioso, agora pelo o discurso é público, ensinado, transmitido, discutido.

Antes do surgimento da Filosofia, toda a realidade era explicada através dos mitos. Mito é a narrativa da origem das coisas a partir de lutas e alianças entre forças sobrenaturais que governam o mundo e o destino dos homens. Os filósofos foram reformulando e racionalizando as narrativas míticas e transformando as explicações do mundo em algo novo.
Não houve uma ruptura brusca nessa passagem do saber mítico ao pensamento racional. Em relação aos conhecimentos, os gregos transformaram em ciência o que era prática para uso na vida: as curas viraram a medicina. Criaram a organização social e política que conhecemos hoje, ou seja, as sociedades até então desconheciam a separação entre poder publico, privado e religioso. Foram os gregos que fizeram essa separação através da organização de leis e instituições como forma de poder e governo. Criaram a idéia de justiça e lei, características da organização política atual. Criaram a idéia de que o pensamento segue regras, normas e leis universais, ou seja, que o pensamento pode ser racional.

V– Períodos da Filosofia grega
O apogeu da filosofia grega acontece durante o auge da cultura e da sociedade gregas, durante a Grécia clássica. O marco foi o filósofo Sócrates.
1. Período pré-socrático ou cosmológico, do final do sec. VII ao final do século V antes de Cristo
É o nascimento da Filosofia, momento em que se investiga o mundo e as transformações da natureza.
Os principais filósofos foram Tales de Mileto, Anaximandro de Mileto, Anaxímenes de Mileto, Pitágoras de Samos, Heráclito de Éfeso, Parmênides de Eléia, e Zenão de Eléia, que fizeram parte de várias escolas.
É denominado período Cosmológico, pois buscava uma visão ordenada do mundo, a explicação racional e sistemática sobre origem, ordem e transformação da natureza e seres humanos. Investigava o princípio universal, imutável e eterno que gerou todas as coisas e seres: de onde tudo vem e para onde tudo retorna.
Esses filósofos acreditavam que todos os seres e coisas estão em movimento e transformação permanente: dia–noite, claro-escuro, quente-frio, seco-úmido, novo-velho, pequeno-grande. E perguntavam:
Por que tudo muda?
Por que se nasce e morre?
Por que tudo se multiplica?
Por que o dia vira noite?
O que é a água, o fogo? Como surgiu? De que é feito?

2. Período socrático – final do século V e todo século IV antes de Cristo, em Atenas.
A Filosofia passa a investigar as questões humanas, deixando de se preocupar apenas com as questões da natureza e suas transformações.
É a época do surgimento das cidades, do comércio, das artes militares. É o momento em que o cidadão começa a exercer a cidadania e precisa opinar, discutir, falar, persuadir, participar das assembléias. Esse período se caracteriza pelo interesse no próprio homem e nas relações do homem com a sociedade.
Essa nova fase foi marcada inicialmente pelos sofistas. Os sofistas diziam que os filósofos cosmologistas estavam errados. Os sofistas eram professores viajantes e ensinavam a arte da oratória, a arte da persuasão. Sofista significa sábio, entretanto ganhou o sentido de impostor. Eles eram considerados professores que vendiam ensinamentos práticos da filosofia e úteis para o sucesso nos negócios. Os sofistas foram criticados por Platão, que os considerava manipuladores de raciocínios.
Nesse contexto histórico da Grécia, surge Sócrates, considerado o patrono da Filosofia. Ele discordava dos antigos poetas (mitologia), dos antigos filósofos (cosmologia) e dos sofistas (oradores).
Sócrates nasceu em Atenas e é considerado um marco divisório na história da filosofia grega, pois ele desejava conhecer o homem e sua essência. Fazia perguntas como:
O que é o bem?
O que é a virtude?
O que é a justiça?
O que é a essência do homem?
Recomendava “conhece-te a ti mesmo”.
Sócrates não deixou registros de seus conhecimentos e o que se sabe dele e o seu pensamento vêm dos textos de seus discípulos e adversários, sendo o principal de seus discípulos Platão.
Sócrates desenvolveu o saber filosófico em praças conversando e mostrando que era preciso unir a vida concreta ao pensamento. Procurava um fundamento para as interrogações humanas. Para ele, o homem é sua alma, a alma é o desejo da razão, e isso distingue o ser humano de todos os outros seres da natureza. Ele dialogava com ricos e pobres, cidadãos ou escravos, importando-se apenas com as características internas de cada pessoa. Estava interessado na prática da virtude e na busca da verdade, contrariando os valores dogmáticos da sociedade ateniense. Então, foi considerado uma ameaça à sociedade e condenado a beber cicuta (veneno). Ele morreu coerente com os seus valores morais.
Platão foi responsável pelos registros dos ensinamentos Sócrates. A maior parte do pensamento de Platão foi transmitida por intermédio da fala de Sócrates, escritos por ele mesmo, Platão. Nasceu em Atenas e era de família nobre. Após longas viagens, fundou sua própria escola – a Academia, nos jardins construídos por
Acadamus, seu amigo. Era uma espécie de universidade de ensino do mundo ocidental. Para Platão, existia um mundo sensível – da aparência, das opiniões, da ilusão, imperfeito, incompleto e o mundo das idéias – eterno, essencial, belo, pleno, perfeito. Para se alcançar o mundo das idéias, é preciso o conhecimento racional e filosófico
Características do período socrático:
A filosofia se volta para as questões humanas: ações, comportamento, crença e valor
O homem como ser racional capaz de conhecer-se a si mesmo, capaz de refletir
Estabelece procedimentos que nos levam a verdade
Define as virtudes morais e virtudes políticas, as idéias e práticas que norteiam o comportamento dos seres humanos
Busca encontrar a essência dessas virtudes e valores: justiça, coragem, amizade, piedade, amor.
A opinião, as percepções e imagens sensoriais são consideradas falsas, mentirosas, contraditórias para se conseguir a verdade.

3. Período sistemático do final do século IV ao final do século II antes de Cristo
Nesse período, a Filosofia considera que tudo pode ser objeto do conhecimento filosófico.
Seu principal pensador foi Aristóteles, considerado um dos mais importantes filósofos gregos da antiguidade, o grande pensador de todo Ocidente ainda hoje. Ele falou sobre o homem, a alma, classificou animais e plantas, criou o método, discutiu sobre política, leis e comportamentos.
Aristóteles nasceu em 384 a.C., em Estagira, uma colônia grega. Era filho de Nicômaco, médico do rei da Macedônia. Estudou 20 anos na academia de Platão, onde foi professor, tornando-se mais tarde professor de Alexandre da Macedônia.
Aristóteles desenvolveu a lógica para servir de ferramenta do raciocínio e dedicou anos de seus estudos para classificar seres da natureza. Ao mesmo tempo, dedicava-se ao estudo do espírito, do universo interior e exterior do ser humano, incluindo política e sociedade. Desenvolveu o conceito essencial que diferencia o homem de todos os seres no mundo: a capacidade de buscar sempre fazer melhor, de ser feliz – a ética.

4. Período helenístico ou greco-romano, do final do sec. III antes de Cristo até o sec. VI depois de Cristo
Esse momento foi marcado pela expansão militar do Império Macedônico e se caracterizou pela difusão da civilização grega clássica.
O pensamento filosófico continuou fundamentado pelas escolas de Platão e Aristóteles. No entanto, o cidadão deixa de influir na vida política e a reflexão política é abandonada. A principal preocupação desse período é a intimidade do homem: sua vida interior, suas regras de conduta, sua paz interior. Surgem as escolas filosóficas: estoicismo, epicurismo e pirronismo e cinismo.

VI– A herança da Filosofia grega para o Ocidente
A Filosofia grega possui características, apresenta formas de pensar, estabelece concepções diferentes das de outros povos e culturas. Os gregos instituíram bases e princípios fundamentais do que chamamos razão, racionalidade, ciência, ética, política, técnica, arte. Essas bases e princípios passaram a influenciar decisivamente o pensamento e as instituições da Europa ocidental e se expandiram para a América e o mundo.
Cabe ressaltar algumas contribuições:
A idéia de que a natureza obedece a leis e princípios necessários e universais, isto é, são os mesmos princípios em todas as partes e em todos os tempos. Exemplo: quando o filosofo inglês Issac Newton estabeleceu a lei da gravitação dos corpos serviu para todos os corpos da natureza ou seja nenhum corpo escapa dessa lei, ela é universal, isto é, válida para todos o corpos em todos os lugares e tempos.
A idéia de que as leis da natureza podem ser plenamente conhecidas pelo nosso pensamento. As leis da natureza não são conhecimentos misteriosos e secretos que precisam ser revelados por deuses. Mas podem ser alcançados pelo pensamento humano.
A idéia de que nosso pensamento também opera obedecendo a leis, normas, regras e normas universais e que podemos distinguir o verdadeiro do falso. O nosso pensamento é lógico e segue leis lógicas de funcionamento.
A idéia de que as práticas humanas, isto é, a ação moral, a políticas, as técnicas e as artes dependem da vontade livre, da discussão, da nossa escolha emocional ou racional. As nossas ações dependem de nossas preferências de acordo com certos padrões que foram estabelecidos pelos próprios seres humanos e não por forças misteriosas. Então a ação humana pode ser conhecida.
A idéia de que os acontecimentos naturais e humanos podem obedecer a leis naturais ou da natureza humana, mas também podem ser acidentais quando dependem das escolhas dos homens. Essa idéia nos permite evitar o fatalismo – de que estamos sujeitos as forças da natureza – e evitar a ilusão de que tudo depende de nos.
A idéia de que os seres humanos aspiram ao conhecimento, à felicidade, à justiça, isto é, que os seres humanos não vivem nem agem cegamente, mais criam valores pelos quais dão sentido às suas vidas e às suas ações.

VII – Conclusão
A filosofia surge quando a explicação da realidade universal dada pelos mitos já não satisfaz a alguns pensadores gregos. Estes começam a fazer perguntas e buscar respostas, mostrando que o mundo e os seres humanos podem ser conhecidos pela razão humana.
A verdade do mundo e dos homens passa a não ser algo secreto e misterioso, ao contrário, torna-se algo que podia ser conhecido por todos através do pensamento, da sabedoria, do uso metódico da razão.

Do medo à dialética

A palavra dialética, como todos os conceitos fundamentais da filosofia, ou melhor, como todas as palavras, tem uma história. A diferença é que a história das palavras às quais foi atribuída dimensão filosófica, que são chamadas categorias, produz significados que dependem, basicamente, não do uso coletivo, mas do sentido que adquirem no contexto de sistemas de pensamento determinados. Numa primeira vez, elas são arrancadas do uso comum, quer dizer, de sua pré-história filosófica, refundidas e ampliadas em suas determinações para que possam integrar a abstração e a generalidade do discurso filosófico. Consta que, em relação à dialética, teria sido Sócrates o primeiro a fazê-lo. Pelo menos, é o que nos diz Platão, que colocou estas palavras na boca de Sócrates: "Mas a quem sabe a arte de interrogar e de responder, que outro nome posso dar senão o de dialético?"(1) .

Daí em diante, a palavra dialética esteve presente nos principais sistemas filosóficos e ela mesma, em seus significados, evoluiu e se transformou sob a influência de dois tipos de dialética. A primeira, no sentido platônico (a partir do conceito que teria sido originalmente indicado por Sócrates), isto é, em virtude da "arte de interrogar e responder" a que se dedicam os filósofos. A segunda, em função das contradições e da transformação histórica que sofreu o próprio mundo que a filosofia procura pensar e entender. Neste último sentido, já começamos a penetrar na significação moderna que a filosofia atribui ao conceito de dialética, o que, efetivamente, nos interessa discutir neste texto. A formulação mais complexa e profunda dessa categoria deve-se, sem dúvida, ao maior de todos os filósofos idealistas: Georg Wilhelm Friedrich Hegel, nascido em Stuttgart, na Alemanha, em 1770. A grandeza e, ao mesmo tempo, a ambigüidade do sistema de Hegel que, por um lado, considerava a Revolução Francesa como a última etapa revolucionária da história da humanidade (admitindo, daí em diante, reformas e aperfeiçoamentos progressivos) e, por outro, continha no seu interior a explosividade da idéia de dialética, não poderia deixar como herança apenas uma simples escola filosófica. E, de fato, deixou um patrimônio que se subdividiu em várias correntes que penetraram praticamente todo o pensamento posterior. A "esquerda" e a "direita" hegelianas, como foram chamadas as duas vertentes iniciais, se inclinavam para um dos pólos da contradição latente na filosofia de Hegel. A primeira, em sua maioria simpatizante de uma posição política democrático-radical, estava mais interessada no caráter subversivo da dialética. Mas era uma época de efervescência e confusão das idéias. "Os jovens hegelianos, subversivos em religião, mantinham-se por vezes conservadores em política - como Strauss - ou inversamente." (2) Enquanto isso, a "direita" hegeliana buscava, sobretudo, ser fiel ao sistema global da concepção do mestre, ressaltando suas implicações religiosas e conservadoras.

O "pássaro" antecipado

A dialética elaborada por Hegel permaneceu, principalmente, em oposição ao sistema hegeliano e suas idéias políticas, no interior do pensamento revolucionário de Karl Marx, numa perspectiva materialista. Inicialmente um "jovem hegeliano", mais tarde Marx iria se tornar - junto com Engels - o fundador de uma concepção do mundo que se propôs ser, a um só tempo, interpretação e instrumento teórico da luta revolucionária do proletariado. O marxismo assumiu, desse modo, uma tarefa ambiciosa, até então jamais tentada pelas filosofias anteriores.

As concepções filosóficas, em qualquer época, sempre expressaram interesses sociais e históricos, participando de forma efetiva, mas indireta, das lutas políticas. Sua relação com essas lutas, embora por vezes tenha sido intensa, nunca havia sido interiorizada no próprio sistema filosófico como dimensão constituinte de elaboração teórica. Ou seja, os filósofos interpretavam o mundo de maneira crítica ou apologética e essa interpretação retornava à arena social e política, incentivando o conformismo, a reforma ou até a revolução. A idéia de uma filosofia que se propusesse a modificar o mundo, não apenas consciente e deliberadamente, mas que fizesse dessa atividade e do avanço das ciências em geral, tanto o seu critério como a fonte de sua autocrítica e desenvolvimento, é a tese fundamental do marxismo. E aqui temos, em conseqüência, o sentido mais geral da categoria medular do marxismo, já numa abordagem materialista, a saber, a práxis.

Hegel havia atingido plenamente a autoconsciência da filosofia como interpretação do mundo e epitáfio de situações históricas determinadas, agregando, também, a tese da autoconstrução humana através do trabalho. Ele afirma que cabe à filosofia desvendar o curso geral do mundo, desde de sua gênese lógica até o presente histórico (e acredita que a sua concepção é o coroamento desse processo), mas que ela chega sempre muito tarde para realmente transformar. Para Hegel, há uma Razão que atribui um sentido à história. Ela não é um Deus tal como a religião tradicionalmente o concebe, pois não está separada do mundo, não é anterior (só o é logicamente) nem exterior ao universo. Mas é exterior apenas à consciência imediata dos homens e aos seus atos, que perseguem fins particulares. Porém, pela conjugação desses atos ela acaba se realizando. Cabe à filosofia, portanto, revelar essa Razão, torná-la consciente de si mesma através da consciência humana, já que ela está contida integralmente na realidade do mundo. "A missão da filosofia - diz Hegel - está em conceber o que é, porque o que é, é a razão." (3)

Observa-se, então, que o conceito de práxis em Hegel, ou seja, a idéia da autoconstrução humana através da própria atividade dos homens (que tem no desenvolvimento das formas sociais do trabalho a sua base histórica), assume um conteúdo, por assim dizer, "invertido". Não são os homens que se constróem à medida que constituem sua vida material, sobre a qual ergue-se uma razão humana que, progressivamente, pode atribuir-se fins cada vez mais livres e autônomos em relação aos constrangimentos imediatos desta vida material. É a Razão que se constrói, através da ação histórica dos homens, num sentido livre e autônomo. Sendo assim, não poderia mesmo a filosofia assinalar mais do que um grandioso epitáfio para cada época que vai morrer.

"Para dizermos mais alguma coisa sobre a pretensão de se ensinar como deve ser o mundo, - afirma Hegel - acrescentare-mos que a filosofia chega sempre muito tarde. Como pensamento do mundo, só aparece quando a realidade efectuou e completou o processo de sua formação. O que o conceito ensina, mostra-o a História com a mesma necessidade: é na maturidade dos seres que o ideal se ergue em face do real, e depois de ter apreendido o mundo na sua substância, reconstrói-o na forma de um império de idéias. Quando a filosofia chega com sua luz crepuscular a um mundo já a anoitecer, é quando uma manifestação de vida está prestes a findar. Não vem a filosofia para rejuvenescer, mas apenas reconhecê-la. Quando as sombras da noite começam a cair é que levanta vôo o pássaro de Minerva." (4)

É verdade que as filosofias avançadas de cada período histórico não nascem para rejuvenescer, nem, tampouco, apenas para "reconhecer" o que está findando. Às vezes, aparecem inclusive antes que uma manifestação de vida - um período histórico - esteja prestes a findar. Prova-o o marxismo, cujo "pássaro de Minerva" levantou vôo antes do capitalismo completar o processo de sua formação, para interpretar e antecipar, para criticar teoricamente e indicar o caminho prático da transformação. Em que pese o caráter relativamente inusitado da tarefa, o marxismo demonstrou que pode mover o mundo, mesmo que o tenha feito até agora num sentido incerto e contraditório. A verdade é que Marx fez mais do que reconstruir o mundo sob a forma de um império de idéias, pois suas idéias alteraram profundamente a história e certamente continuarão a fazê-lo.

A razão como sujeito

A idéia de práxis em Hegel implica numa autoconstrução na qual a Razão é o verdadeiro sujeito e os homens reais são o predicado, embora a atuação desse predicado na história seja condição para o desenvolvimento da Razão enquanto sujeito. O marxismo inicia o resgate teórico do sujeito real na história porque concebeu um novo materialismo, que subverteu a ordem lógica e ontológica da proposição hegeliana, reconhecendo, contudo, o desenvolvimento do "espírito" através da história. Quer dizer, evitando estabelecer uma relação simples e natural entre os homens concretos e reais como sujeitos, a razão como predicado e a natureza como, digamos, "objeto direto". A relação entre os homens e destes com a natureza aparece como uma relação histórica, não como algo dado imediatamente pela percepção. Assim, ao aceitar o pressuposto materialista tradicional de que o ser precede a consciência ou, noutras palavras, de que a matéria é anterior ao pensamento, Marx não considerou este último como algo que deriva diretamente da matéria e sim algo que se produziu em sociedade, a partir da apropriação coletiva da natureza por meio do trabalho. Os homens são seres naturais por sua origem, mas se afastam cada vez mais desse fundamento natural (nunca completamente) à proporção que o dominam conscientemente, construindo, com base nesse afastamento, a sua própria essência humana como ser livre, ou seja, como ser que se atribue finalidades de modo progressivamente mais consciente e radical.

Marx assimilou, nessa medida, o princípio ativo da consciência, o aspecto subjetivo do homem que era privilégio dos sistemas idealistas - especialmente de Hegel - que, no entanto, faziam dele uma dimensão mistificada. Em conseqüência, unindo a premissa materialista e o aspecto ativo e criador da subjetividade humana, deu um novo conteúdo ao conceito de práxis. Agora ele significa uma relação em que a matéria é ontologicamente anterior ao pensamento, a atividade prática na história é logicamente anterior à consciência e esta, por seu turno, é tanto lógica quanto ontologicamente superior à matéria e à atividade prática. Embora, evidentemente, o pensamento não possa existir sem a matéria nem desenvolver-se sem a prática. Em outras palavras, o "momento separatório", essencialmente humano, é a consciência. O que dignifica o homem não são suas vísceras nem o fato, em si mesmo, de usar instrumentos, cavar a terra para plantar e produzir artefatos os mais variados. O que o dignifica, porque o define, é o fato de pensar no que faz e em si mesmo. Embora a premissa materialista não nos permita esquecer nunca que ele jamais seria um homem sem suas vísceras, não teria desenvolvido seu pensamento se não tivesse usado instrumentos, cavado a terra para plantar e produzido os mais variados artefatos. Assim, gerado a partir do universo natural, condicionado pelo mundo que ele mesmo vai construindo através da história, enquanto realidade objetiva e subjetiva, ele escolhe seu futuro entre alternativas reais e forja novas condições.

É por isso que Marx pode colocar uma cunha entre as duas missões propostas por Hegel para a filosofia - interpretar o mundo e, ao fazê-lo, escrever o epitáfio de cada época, - ou seja, pode conceber, no contexto de uma atividade prático-crítica real e não ilusória, a crítica (teórica) e a prática (política) revolucionária.Portanto, é nesse contexto teórico materialista que a práxis, enquanto categoria, ultrapassa a significação meramente explicativa e adquire um sentido revolucionário, já que a partir dela os homens concretos e reais podem ser entendidos como verdadeiros sujeitos da história. A dialética marxista, então, sob a égide desse conceito de práxis, assume um novo conteúdo: não se trata mais de uma dialética do conceito, que se media através da história para reconhecer-se como Razão no interior da Idéia que vai perfazendo o caminho da liberdade. Mas de uma dialética originalmente objetiva que põe o homem no mundo e, o homem, através de sua apropriação prática e teórica desse mundo, se põe como história e dentro desta a própria história do mundo passa a revelar-se como o processo da verdade. O conceito, como pensamento histórico do homem, pressupõe, não a si mesmo como origem do universo, mas como dimensão "separatória" e superior presente na origem da história, embora o próprio conceito (pensamento) se reconheça nessa regressão como logicamente posterior à atividade prática, pois ele descartou-se da ilusão de que é a origem do universo. Assim como o universo revela-se no interior da história humana, através dela, o conceito revela a dialética concreta da natureza e da história mediando-se pelas suas próprias pressuposições (na forma de premissas ontológicas). Isso porque o próprio mundo presente se manifesta mediado pela apropriação prática e teórica realizada na história precedente. Assim, tais premissas devem ser sempre recorrentes e nunca consideradas absolutas.

A Ultrapassagem como processo

Não é o bastante, portanto, fazer como Engels que, quase literalmente, "inverteu" o sistema hegeliano colocando a matéria no lugar da "Idéia" e, em conseqüência, empobrecendo o papel da consciência dignificou exageradamente a matéria, atribuindo-lhe uma teologia que ela não tem. Marx, notadamente nas Teses sobre Feuerbach, foi mais longe. Mas é preciso reconhecer que essa ultrapassagem (no sentido de superação) de Hegel pelo marxismo deve ser considerada como um processo em andamento, um caminho que foi iniciado, mas não concluído. Não é por acaso que Lênin, depois da revolução, num artigo escrito dois anos antes de sua morte - sobre o "materialismo militante" - propõe a criação de uma "sociedade dos amigos materialistas da dialética hegeliana". Qualquer tentativa de pensar o marxismo fecundamente sem reconhecer a grandeza da herança hegeliana, como pretendem certos "marxólogos estruturalistas", é uma tarefa vã que prossegue no curso das adulterações stalinistas. O próprio Marx foi o primeiro a reconhecer sua dívida. Há, certamente, uma potencialidade dialética no pensamento de Hegel que não foi plenamente esgotada, embora o princípio idealista do sistema hegeliano deva ser efetivamente rejeitado.

A dialética materialista - ou o materialismo dialético - é a filosofia do marxismo. Ora, se a dialética materialista fundada por Marx só pode ser apreendida em termos filosóficos, temos outra questão implicada no próprio conceito de dialética: a natureza da filosofia.

O lugar da filosofia

Há uma articulação radical entre filosofia e política, ou seja, entre a filosofia e o fazer presente da história. Mas essa relação não indica uma correspondência imediata ou mecânica entre proposições filosóficas e suas conseqüências políticas. O pensamento filosófico e as teorias políticas envolvem níveis diferenciados de abstração e generalidade, cada um com uma forma própria de pensar e categorias especiais. No entanto, explicitamente ou não, toda a ação política envolve pressupostos sobre a natureza e o funcionamento do fenômeno político. Ou seja, há uma "teoria" mesmo que seja inconsciente, que oferece suporte e sentido à ação política. Num nível mais amplo de generalidade e mais elevado de abstração, existem premissas que dão suporte e sentido a todas as teorias particulares e a todos os atos humanos, sejam elas conscientes e explícitas ou não. Esse é o lugar da filosofia, sendo que o seu núcleo é a questão ontológica, a primeira premissa entre as primeiras: O que é o mundo em que vivemos e o que somos nós em relação a ele? Raramente o marxismo foi entendido como ontologia, enquanto que o elemento filosófico fundante da ação de Marx foi ter elaborado em linhas gerais uma ontologia histórico-materialista, superando prática e teoricamente o idealismo lógico-ontológico de Hegel.(5)

O que impede ou dificulta a percepção de muitos autores em relação ao objeto da filosofia é a generalidade do discurso a que ela se propõe, em virtude de sua vocação. Aliás, cada sistema filosófico, segundo o seu conteúdo, parece conceituar diferentemente a própria disciplina que justifica o seu discurso. Isso tem levado alguns a concluir que a filosofia é um diálogo de surdos: cada um fala sobre os seus temas preferidos, que parecem ser objetos arbitrariamente escolhidos. No entanto, a filosofia continua dando o que falar. Concluída e finalizada com Hegel, em vias de ser "abolida" pela sociedade comunista por meio de sua realização prática, tal como aparece no jovem Marx, dissolvida nas ciências naturais por Engels, estigmatizada e condenada à morte sem honras através de Comte, rebaixada a ser mera luta política travada no terreno teórico, segundo Althusser, enfim, assassinada e renascida no ato, a filosofia continua sendo a convergência teórica mais radical de todas as diversidades e confrontos. O problema é que só se pode matar a filosofia filosoficamente, como já o disseram alguns, isto é, produzindo outra filosofia.

A filosofia tem um objeto, embora não seja uma ciência no sentido operatório que esse conceito adquiriu nos últimos trezentos anos. Trata-se de um conhecimento, um "saber", que é o pressuposto de todos os atos e conhecimentos particulares - mas também do sujeito e de sua liberdade de escolher entre alternativas concretas, - ao mesmo tempo que estabelece algum tipo de apropriação desses conhecimentos e da liberdade do sujeito. O objeto da filosofia é o mais amplo de todos. É a própria realidade em sua máxima amplitude, pois inclui, enquanto seu objeto, não apenas tudo o que existe objetivamente, mas ainda uma parte do existente reconhecida como sujeito em sua essência (os homens). A filosofia, portanto, deve dar uma resposta à questão da totalidade no sentido mais abrangente dessa categoria. Deve oferecer algum tipo de explicação ao problema da realidade em geral como um todo estruturado e racional, embora não implique, necessariamente, num sistema fechado, exaustivo e absoluto, como o demonstra a dialética materialista. É o que indica Karel Kosik quando afirma que à pergunta "como se pode conhecer a realidade?", precede outra; "O que é a realidade?". (6) A filosofia, mais precisamente o seu núcleo ontológico, é a pressuposição sintética fundamental do pensamento enquanto saber sistemático. Ela não decorre de uma estrutura lógica anterior. Ela mesma é a estrutura lógica anterior.

Dialética: a ontologia e o método

Nos Cadernos Filosóficos, que constituem anotações de um estudo sobre Hegel, Lênin supera em vários aspectos a visão simplista da relação sujeito-objeto que aparece em Materialismo e Empirocriticismo. Não obstante, mesmo nos "Cadernos" ainda não destaca a anterioridade da ontologia na constituição do conhecimento filosófico. Ele fala de uma "coincidência" entre a Dialética (ontologia), a Lógica (formas de pensar a realidade e método de abordá-la) e a Teoria do Conhecimento (análise teórica das possibilidades e da natureza do conhecimento). Nessa "fusão" filosófica, da qual não se destaca a prioridade ontológica, fica difícil ultrapassar plenamente a idéia de uma "dialética da natureza" como premissa teórica fundamental do marxismo. Noutras palavras, a existência de uma dialética da natureza é um pressuposto materialista que está contido na ontologia, mas esta é mais complexa do que aquele simples pressuposto. A idéia de práxis, esta sim, porque contém o pressuposto de uma dialética da natureza e, ao mesmo tempo, a apropriação histórico-social (prática e teórica) dessa dialética por outra que envolve a subjetividade e a liberdade, é a premissa filosófica fundamental do marxismo.

É por isso que o núcleo ontológico do marxismo tem na práxis a sua categoria-chave, à medida que permite reconhecer tanto a dialética da natureza como a dialética histórica, a unidade e a oposição entre elas. Isto é, a identidade originária do mundo como dialética da natureza, que forma o substrato natural dos homens e do seu mundo histórico, e a ruptura ocasionada pela emergência da humanidade como subjetividade e consciência. Desse modo, o pensamento filosófico pode apreender a complexidade de mediações que escapam diante da pressuposição simplificadora de uma "dialética da natureza", da qual o homem emerge como mero epifenômeno, por mais que se lhe atribua, depois, qualidades especificadoras.

Portanto, a palavra dialética envolve três sentidos e não apenas dois. O primeiro como dialética da natureza: uma espécie de "lei universal" do mundo enquanto objetividade considerada em si mesma, uma qualidade do ser entendido como estrita naturalidade. É esta dimensão da dialética que, se for tomada como ontologia, tal como fez Engels, leva inevitavelmente ao naturalismo. O segundo sentido da palavra dialética é propriamente o da ontologia, naquela perspectiva que o marxismo aponta nas Teses sobre Feuerbach, ou seja, sob o ângulo da práxis como categoria central da filosofia. Aqui, a dialética do ser natural é um aspecto do pressuposto que implica, também, a mediação histórico-social em que a dialética da natureza se manifesta pela apropriação humana, isto é, como ruptura e unidade entre a natureza e a história, entre o ser e a consciência, entre o objetivo e o subjetivo, que se repõem mútua e constantemente num patamar cada vez mais elevado. Para o marxismo, esse deve ser o conteúdo filosoficamente prioritário da dialética.

O terceiro sentido é a dialética como método e teoria do conhecimento, numa única dimensão lógica dotada de uma vocação crítica e autocrítica. Este último sentido, a dialética como método e teoria do conhecimento, decorre intrinsecamente da dialética como ontologia ou, se quisermos, do materialismo dialético como a filosofia do marxismo. A aplicação do método dialético é, sem dúvida, o problema mais difícil, já que, assim entendido, o método não se constitui em regras formais, mas igualmente um momento dinâmico da apropriação teórica do mundo. Uma ponte, apenas relativamente estável, que vai do conhecido ao desconhecido. Ele pressupõe a dialética da natureza, a unidade do mundo enquanto mundo natural e a ruptura ocasionada pela emergência da subjetividade do homem. Além disso, a possibilidade permanente de uma nova unidade no bojo dessa ruptura - à proporção em que esta, por outro lado, se aprofunda - através da crescente apropriação prática e teórica da realidade pelo homem. Somente com esse conteúdo é que o materialismo dialético, aplicado à particularidade da história, resulta no materialismo histórico.

Dificuldade filosófica

A dificuldade do método dialético, inerente à complexidade das mediações que ele encerra, para efeitos de exposição, pode ser decomposta em algumas de suas determinações.

O método dialético quer pensar a transformação e o fluxo, as transições, a evolução e a revolução, o movimento perpétuo e universal da matéria e do pensamento, do objetivo e do subjetivo, da prática e da teoria. Para pensar a realidade, no entanto, é necessário uma concepção geral, ou seja, premissas filosóficas amplas, mas determinadas. Caso contrário, torna-se impossível qualquer conceito. Considerados isoladamente, fora de quaisquer pressuposições, os fenômenos perdem o sentido e não podem ser apreendidos pela consciência. Aliás, os próprios conceitos que utilizamos para pensar - e até mesmo a linguagem em geral - envolvem premissas imediatas e mediatas; constituem conhecimentos anteriores que, numa regressão lógica, podem ser percebidos como pré-conhecimentos em graus de generalidade e abstração crescentes.

Além disso, se entendermos como absoluta a afirmação de Heráclito de que "nunca nos banhamos no mesmo rio", jamais poderemos pensar num rio concreto e sequer poderemos nos banhar em qualquer rio determinado. Se nada fica do movimento universal e tudo, efetivamente, existe no tempo, só podemos nos banhar num fluxo sem nome, sem identidade, num rio que não é rio, numa água que não é água. E mesmo que conseguíssemos, tampouco seríamos nós, pois seríamos o outro de nós mesmos a cada instante absolutamente finito e abstratamente dialético.

Noutras palavras, se a persistência não estivesse efetivamente presente no transitório, a substância no fluxo, a eternidade no presente, o infinito no finito, não seria possível qualquer conceito capaz de apanhar a essência da realidade. Os conceitos poderiam ser, no máximo, aproximações operatórias. A filosofia, por seu turno, poderia tão somente e, na melhor das hipóteses, elaborar um discurso negativo sobre a ontologia e justificar a manipulação operatória sobre o mundo. Pelos caminhos tortuosos de uma dialética abstrata chegaríamos a um agnosticismo de fundo positivista. Para admitir um discurso ontológico afirmativo seria preciso uma filosofia a cada dia, a cada hora, a cada minuto, a cada segundo, e assim sucessivamente.

A transformação quando considerada de modo absoluto, não dialético, quer dizer, abstratamente separada de seu oposto que é a "acumulação" ou a permanência - que é a substância - conduz na melhor das hipóteses ao agnosticismo, senão ao absurdo. Em qualquer desses casos, não poderemos pensar e entender aquilo que pretendíamos ao pressupor a realidade como dialética: a realidade como movimento e concretitude. Logo, reconhecer o fluxo eterno e a transformação permanente ainda não é o método dialético, embora seja seu pressuposto e condição. É preciso admitir um nexo entre os momentos de qualquer processo para reconhecer a concreticidade do mundo, isto é, a realidade como totalidade em movimento, a constituição da realidade concreta não apesar da transformação, mas através dela.

Já podemos perceber, então, que a dificuldade filosófica para pensar a dialética do mundo e aplicar o método correspondente, enunciada acima, não é intransponível. A constituição daquilo que é permanente se dá na própria transformação. A identidade surge, não de uma suposta estática universal ou de uma astúcia paralisante do conceito, mas na forma de uma substância objetiva cuja essência cabe ao conceito revelar e apropriar-se. A identidade, tanto no tempo como no espaço, não surge de um mundo igual a si mesmo, fixo no tempo, homogêneo no espaço, mas como substância que se produz no interior do fluxo e através da diversidade.

Essa dualidade, unidade contraditória entre fluxo e permanência, diversidade e identidade, exige uma filosofia definida, com premissas ontológicas estabelecidas claramente. Mas radicalmente humilde em sua vocação autocrítica, embora severa e revolucionária em sua vocação crítica e demolidora. O marxismo, como filosofia dialética do nosso tempo, deve, por isso, questionar-se constantemente sobre suas próprias premissas, tanto sobre aquelas imediatas e particulares quanto sobre as mediatas e fundamentais. Caso contrário, pela fixidez antidialética de seu próprio arcabouço, o marxismo estará traindo a vocação dialética que se propõe realizar enquanto método e, o que é pior, também como práxis revolucionária. Esse é o sentido mais abrangente que podemos atribuir ao conceito de dogmatismo que, sobretudo pela vertente stalinista, mas não apenas por ela, entorpece o desenvolvimento criativo do marxismo e sua eficácia revolucionária. Como se uma concepção que se pretende materialista e dialética, sob a égide da práxis, pudesse dizer sem denunciar sua própria falácia: "tudo se transforma a todo o instante, menos eu que não sou deste mundo. . . ".

Dificuldade lógica

Adotar o método dialético pressupõe compreender a ontologia dialética, isto é, entender a dialética mesma do mundo, tanto da natureza quanto da história, e a inter-relação (dialética) entre elas pela práxis. Isso parece evidente: quem não sabe de antemão que o mundo é dialético, não pode pensá-lo dialeticamente. Mas ficamos diante de um impasse colocado por uma contradição lógico-formal: para compreender o mundo como dialética - e então poder pensá-lo como tal - necessitamos do método dialético. Quer dizer, estamos dentro de um círculo aparentemente vicioso. Para saber algo, é preciso, antes, saber aquilo que estamos tentando descobrir.

O problema aqui, como já nos demonstrou a tradição do pensamento dialético, pelo menos na prática é mais simples. Se não o fosse, as crianças jamais aprenderiam a falar por meio de uma linguagem que desconhecem absolutamente. A Humanidade, por si mesma, resolve essa contradição formal há milhares de anos na prática, ou melhor, através da práxis: a relação entre a teoria e a prática resulta em algo mais do que a soma do conteúdo de cada uma delas. Tal como um casal que gera um filho, o qual, apesar da contrariedade dos pais, é uma terceira pessoa e não uma simples soma ou composição dos atributos e qualidades já existentes no casal.

A práxis implica que, num sistema de referências práticas e conceituais, na atividade em que se relacionam e se produzem o aspecto objetivo e subjetivo, os objetos assumem sentido ao mesmo tempo que as palavras revelam significados. Assim como as crianças aprendem a falar, assim os adultos podem aprender a pensar dialeticamente, embora, evidentemente, estes tenham que fazê-lo de modo deliberado e consciente.

É preciso a consciência do mundo prático, concreto, enquanto realidade mediada pela atividade "prático-crítica", para pensar dialeticamente. A prática sem a reflexão teórica nada ensina, exceto o reflexo condicionado e os músculos. A teoria, voltada para si mesma, com finalidade meramente contemplativa, torna-se vazia de conteúdo. Teorizar sem ter como finalidade e referência a realidade concreta e a sua transformação é, senão uma apologia do existente, um diletantismo inoperante e geralmente presunçoso. O que não implica, bem entendido, que a teoria deva ser uma serva da prática imediata. A prática imediata é que deve ser direcionada pela teoria, embora esta se alimente da prática e seja constantemente questionada, criticada e alargada por ela. O mundo, afinal, não é uma esquina, um sindicato, um bar, um partido, uma cidade ou mesmo um país. Não obstante, todos esses elementos estão legitimamente dentro do mundo.

O percurso lógico da compreensão, sem esquecer que o método dialético é analítico e sintético ao mesmo tempo, vai, fundamentalmente, do abstrato para o concreto, do geral para o particular, do todo para as partes. Portanto, atuar politicamente sobre a realidade, sem a reflexão teórica sobre as totalidades concêntricas que, progressivamente, envolvem os atos até o seu último patamar, que é o lugar da filosofia, é abdicar o papel de sujeito real para apenas representar o papel de "agente".

Dificuldade lingüística

A constituição original do pensamento humano, através de conceitos, como indica Caio Prado Júnior (7) , correspondeu a certas necessidades práticas: os conceitos precisavam identificar para que a consciência percebesse a diversidade, fixar para que fosse apanhado de modo elementar o fluxo e a transformação, separar para depois unir os fenômenos entre si.

O pensamento, mesmo nos seus primórdios, executava o duplo movimento de análise e síntese já assinalado, concebendo, em certa medida, tanto a identidade como a diversidade, a permanência como o fluxo. Mas o conceito, que aparece como a base elementar da linguagem e do pensamento, na sua interioridade surge como expressão predominante da identidade e da permanência. Pelo seu caráter relacional, sobretudo através de sua relação "exterior" no contexto da linguagem é que o conceito expressa, pelo menos inicialmente, o movimento e a diversidade. Em certo sentido, portanto, a própria linguagem, em função das necessidades práticas emergentes - basicamente classificatórias - parece ter se constituído numa estrutura em si dialética enquanto linguagem e, por outro lado, antidialética (o mais correto seria dizer "pré-dialética") no que tange ao caráter elementar dos conceitos. Mas, sob o influxo da dialética do mundo e da práxis, mesmo formalmente ela apresenta potencialidades dialéticas inesgotáveis: pois pode repor, constantemente, a externalidade dialética que realizam os conceitos entre si na totalidade da linguagem, como dialética da interioridade nos conceitos já existentes e na produção de novos. É desse modo que se forma o arsenal dos conceitos e categorias dialéticas. Aliás, a palavra dialética, por si mesma, já é um exemplo eloqüente.

Dificuldade ideológica

A dificuldade ideológica mais fácil de ser superada, para aplicação do método dialético, é aquela produzida conscientemente pelas teorias e filosofias que sistematizam o ponto de vista da ideologia dominante. O mundo é pensado através de premissas que, de maneira explícita ou implícita, consideram a realidade como fixidez e permanência. Temos aqui, tanto o idealismo clássico (não hegeliano), como a tradição empirista-positivista e seus desdobramentos mais recentes: o funcionalismo, o neopositivismo, o empirocriticismo, o empirismo lógico, o empirismo crítico e tantas outras derivações secundárias.

A dimensão de reprodução, permanência e fixidez da realidade social tal como se manifesta no senso-comum, é a base orgânica imediata da ideologia dominante. Ela emana das próprias relações sociais, nas quais, bem ou mal, os indivíduos devem inserir-se para viver. Trata-se do obstáculo ideológico mais difícil para se pensar dialeticamente. É o que Kosik chama de "pseudo-concreticidade" (8) , atribuindo-lhe, ao que nos parece, um caráter unilateralmente epistemológico, numa dialética abstrata com seu oposto, que seria a teoria. Sem perceber, portanto, que à ideologia conservadora se opõe ideologia revolucionária, perfazendo, desse modo, uma dialética de mediações e transições até o patamar propriamente teórico.

De qualquer modo, para a questão que ora nos interessa, basta dizer que, para viver numa sociedade determinada, é necessário (em certa medida) "funcionar regularmente", reproduzir atos cotidianos e elementares conforme essa sociedade. Isso cria a chamada "atmosfera comum da vida", na qual os processos aparecem como um círculo que volta sempre ao ponto inicial e, em conseqüência, a totalidade do social surge como fixa à percepção imediata, como uma realidade a-histórica. Simplificando, podemos dizer que o cotidiano é, se percebido e assumido na sua espontaneidade, antidialético. No entanto, ele pode ser outra coisa, pois o cotidiano não é necessariamente puro automatismo e espontaneidade sem reflexão e crítica. Quer dizer, ele não é inevitavelmente um cotidiano alienado. Subjacente a essa questão ideológica, que funciona como empecilho ao pensamento dialético, está aquilo que Hegel chamou de "moralidade objetiva" e que, não obstante, ele entendeu apenas como manifestação da dialética do "espírito" e não como seu obstáculo mais íntimo.

Dificuldade teórica

Se na superfície do mundo histórico, no presente em que somos obrigados a viver e a nos reproduzir socialmente como indivíduos, necessitamos de pensamentos positivos e funcionais, para compreender a dialética substancial, é preciso ultrapassar essa "casca" do mundo na qual os fenômenos aparecem em sua imediaticidade. Trata-se de descer ao fundamento dialético, quer dizer, fazer uma espécie de regressão teórica para o concreto que, ao contrário do que parece, está no fundo, invisível aos olhos e ao tato, e não na superfície. Por isso, visível somente através do conceito e da teoria. Aí entra a necessidade da acumulação de conhecimentos teóricos para penetrar na dialética substancial e revelar a essência concreta da realidade. Dessa forma, a sociedade, homogênea em suas aparências, eterna em seus ciclos repetitivos, vai se revelar como realidade histórica, totalidade em autoprodução e desenvolvimento, mundo humano feito pelos homens. Por isso Marx afirmou que, se fenômeno e essência coincidissem, não seria necessário a ciência. Portanto, é preciso estudar, refletir criticamente, apropriar-se dos conhecimentos acumulados para aplicar fecundamente o método dialético.

Dificuldade "psicológica"

As determinações anteriores, que obstaculizam o pensamento dialético, tendem a se manifestar numa contradição que aparece como evidente. A contradição entre o mundo vivido imediatamente pelos indivíduos, como realidade empiricamente dada, e o método dialético como apreensão histórico-social dessa realidade, não apenas em tese, mas efetivamente sob o ângulo da práxis. Como algo que está se fazendo objetivamente, enquanto totalidade, mas de cujo fazer podemos participar como sujeitos conscientes.

A dialética, então, aparece como "desordem", "indisciplina", "insegurança" e, sobretudo, "medo". Abre-se, por isso, um abismo entre a ideologia revolucionária que pretende pensar a realidade como dialética, por meio do marxismo, e, de outro lado, a dificuldade dos revolucionários para pensar essa dialética e, principalmente, para pensarem-se nessa dialética.

Para liquidar o capitalismo e transformar o mundo numa direção humana são indispensáveis mediações orgânicas, partidos, sindicatos, associações, acordos, táticas, estratégia, disciplina, hierarquia, enfim, é imprescindível uma determinada "ordem" para potencializar a ação das classes, dos segmentos de vanguarda e dos indivíduos. O sujeito que pretende mudar o mundo numa direção revolucionária não pode, simplesmente, em solene e bom tom, declarar as cláusulas da dialética universal. Pois se é um fato, como vimos, que a própria realidade natural está em movimento independente e anterior à nossa atividade e consciência, o sentido humano da transformação só pode ser dado por nós, nossa consciência e ação organizada.

Nesse processo, em virtude das mediações particulares que potencializam nossa ação, somos sujeito e objeto, meio e fim, causa e efeito. Se não formos como os idealistas em filosofia, que normalmente acreditam numa evolução histórica com base num desenvolvimento essencialmente linear da dimensão ético-cultural da sociedade, e tampouco "revolucionários" meramente contemplativos, temos que nos inserir em estruturas de ação organizada. Mais ainda, sabendo que essa necessidade assume radicalidade inusitada no interior do capitalismo, o qual não patrocina espontaneamente uma base orgânica para a práxis conseqüente de sua destruição e substituição pelo socialismo. Essa base orgânica para a reprodução ampliada da teoria e da prática revolucionária tem de ser posta livremente pelo sujeito, como intuiu Lênin com sua tese do partido de vanguarda.

No entanto, os indivíduos revolucionários, mesmo quando se repõem numa totalidade orgânica, sob o ângulo da imediaticidade, tornam-se objetos e não sujeitos, meios e não fins, efeitos e não causas. Ou seja, o pensamento espontâneo que emana das estruturas de ação coletiva, inclusive do partido de vanguarda de tipo leninista, na imediaticidade de suas relações auto-reprodutoras, é sempre parcial, de adaptação e integração. E o que é mais grave, isso coincide plenamente com o senso-comum socialmente dado. O sujeito é vencido no meio do caminho: integrou-se organicamente para transformar o mundo e transformar-se e tornou-se um elemento fixo, pouco crítico, nada reflexivo, que não modifica sequer a si mesmo. A dialética universal passa a ser um horizonte místico e distante. Sua função nela se media por um pensamento que simula grandeza através do discurso formal, mas em conteúdo é parcial, mesquinho, utilitário e manipulatório. E na reprodução orgânica, ele próprio, o manipulado, se torna um manipulador: a ordem, a autoridade, a hierarquia, a disciplina e as formas tornam-se fins ao invés de serem reduzidas aos meios que nasceram para ser. Eis aqui o que podemos chamar de círculo vicioso da mentalidade burocrática. Mas assim como o cotidiano não é inevitavelmente uma dimensão alienada da vida, exceto se deixado na sua espontaneidade corrosiva, muito menos as estruturas constituídas conscientemente para a práxis revolucionária serão inexoravelmente a negação de seu propósito. Quando Lênin acentuava constantemente a necessidade da crítica e autocrítica dentro do partido, da luta ideológica e do permanente desenvolvimento teórico, ele estava percebendo, no plano da política orgânica, a necessidade de vencer a espontaneidade do pensamento alienado que é reproduzido, naturalmente, pela imediaticidade das estruturas de ação.

Traços do método dialético

Podemos, agora, sintetizar alguns traços mais gerais do método dialético que não ficaram suficientemente explícitos:

1. A dialética se propõe a revelar "a coisa em si" do objeto. Isso implica em dois aspectos que se relacionam. Em primeiro lugar, aponta que a dialética quer desvendar internamente o objeto, o movimento e as conexões que emanam do seu interior e constituem sua concretitude. Em segundo, que a dialética não acredita que os objetos sejam incognoscíveis, ou seja, que contenham um segredo íntimo, o qual jamais poderia ser revelado. A dialética crê nas possibilidades plenas do conhecimento, embora considere a verdade como um processo infindável que tem na práxis o seu critério.

2. A dialética supõe a existência de uma inter-conexão universal e estruturada. Seu ponto de vista, por isso, é o da totalidade. A realidade é apreendida como uma totalidade concreta, isto é, algo que está se autoproduzindo como um todo dotado de certa estrutura interna.

3. A dialética envolve dois esforços simultâneos, opostos e complementares: separar e analisar a totalidade percebida, depois unir e refundir racionalmente as partes numa totalidade concreta apanhada pelo conceito.

4. A dialética contesta o chamado "princípio da identidade": ela afirma que uma coisa não é somente "aquilo que ela é", mas também o "seu outro", que ela não é. Ora, se a realidade é efetivamente dialética, uma coisa deve ser, a cada instante, também a sua negação.

5. Para a dialética, não há um fosso intransponível entre quantidade e qualidade, pois um se transforma constantemente no outro. São duas categorias que implicam em duas faces ou dois momentos do movimento, ou seja, a acumulação e a ruptura, a evolução e a revolução.

6. As coisas, em seu movimento, contêm um processo de diferenciação interna que se manifesta, necessariamente, como contradições. São estas as fontes de energia para a totalidade em seu desenvolvimento e transformação. Mas os contrários estão unidos, a realidade é uma "unidade de contrários", pois é dessa unidade que surge a estrutura da totalidade.

7. O movimento e a transformação conduzem à superação e não ao desaparecimento completo daquilo que deixou de existir. Como disse o poeta, "de tudo fica um pouco". E de fato, já vimos que, no interior do próprio fluxo, persiste algo que dá conexão e concreticidade para os momentos sucessivos da transformação.

8. O método dialético, enfim, é uma espécie de "tormento do espírito", não obstante seja um tormento desejado e consciente. Ele se pergunta, a cada instante: que nascimento anuncia o que está desaparecendo? Ao perguntar isso ele se coloca dois pressupostos: a) O que está nascendo não é algo arbitrário, completamente inesperado, pois mantém um nexo com o que está morrendo e cedendo seu lugar. O pensamento pode, em certa medida, prever o que está nascendo se compreender a totalidade do fenômeno em seu desenvolvimento anterior e suas contradições atuais. O que está morrendo, então, não desaparece sem deixar vestígios, ele morre e passa a viver na substância do outro e, assim, deixa sua herança, mas não é mais ele. b) O que está nascendo não é o que morreu sob outra forma, já que aquele morreu efetivamente. Assim, há algo de surpresa real, inesperado, que nunca pode ser previsto e compreendido inteiramente antes de aparecer. E mesmo depois, a compreensão é relativa e provisória, pois não sabemos integralmente o que o novo vai deixar ao tornar-se velho e sucumbir. Não fosse assim, uma filosofia genial poderia apreender, de uma vez por todas, a realidade em todos os seus desdobramentos.

Do medo à dialética

Talvez não seja por acaso que o humor geralmente envolve uma contradição evidente ou uma surpresa, isto é, a produção de um significado completamente novo e imprevisível num contexto familiar ou cotidiano. O imprevisível nascendo do previsível. A surpresa interrompendo a rotina. O novo que sequer se anunciou e, por isso, cria embaraços nos personagens e o riso crítico no espectador ou no leitor. Nesse sentido, rir de si mesmo talvez manifeste realmente sabedoria ou, pelo menos, uma vaga predisposição dialética indicada por uma latente disponibilidade autocrítica.

De qualquer modo, a dialética como método não é só um "tormento do espírito". Compreendê-la e ajudar a construí-la no sentido da humanização, através da história, é uma tarefa elevada que implica uma satisfação legítima: aquela que emana da luta que o sujeito empreende para transformar a realidade, construindo-se nesse processo.

O caminho que vai do medo até a liberdade, do ponto de vista do indivíduo que pretende ser revolucionário, passa necessariamente pela dialética: como ontologia centrada na práxis, como pressuposto da objetividade dialética no interior dessa ontologia, como método e insubmissão diante do mundo que está aí e de seu curso natural e espontâneo.

O que a Filosofia tem a ver com a constituição?

Olá pessoal, venho hoje trazer para vocês algo que veio a minha mente e que deixou uma imensa dúvida.
Espero que gostem...
Boa reflexão...

Direito constitucional e filosofia:
uma avaliação em perspectiva histórica (*)


Nelson Saldanha


“O constituinte ama, como o utopista, a ordem da razão e a sua perfeição projetada sobre a cidade. Daí surge um mundo racional, o constitucional, oposto ao tenebroso passado de desordem, injustiça e irracionalidade” (Paulo Ferreira da Cunha, Constituição, Direito e Utopia, Coimbra Editora, Universidade de Coimbra, 1996, pág. 371.)

A abordagem de um tema como este certamente envolve, para utilizar uma expressão sempre recorrente, a necessidade de rever conceitos. E com isto revisitar idéias e obras, reconsiderar conexões, reexaminar fundamentos. Trata-se de um balanço histórico, que não pode estar desprovido de um vigilante olhar filosófico. Obras, conexões e fundamentos são antes de tudo realidades históricas.
É evidente que a revisão em causa afeta e conota a dimensão cultural daquelas realidades; e, igualmente, que o legado de cada época deve aparecer como um momento dentro de um largo processo. Aquilo que hoje qualificamos de histórico consiste, efetivamente, em algo que na visão dos pósteros se tornou exemplar: tornaram-se exemplares (e portanto clássicas) as colunas gregas e as pirâmides egípcias, as “navegações grandes que fizeram” e a alusão à “fé e o império”.
Não demorarei a propósito de clássicos e de exemplaridades, temas de que tratei em textos outros. Mencionarei contudo, quase por um hábito docente, o pensamento de Platão, com seu arqui modelar projeto filosófico-político-pedagógico, e igualmente o de Aristóteles, sistematizador e reformulador. E em torno de ambos a rica experiência grega, que nas exposições modernas gira sempre em torno da polis e da politeia. Não se dirá que a política nos séculos V e IV AC foi exatamente a conseqüência prática de uma formulação filosófica, mas ao menos se pode pensar que o mesmo contexto histórico-cultural que propiciou a política grega produziu a filosofia jônica e a eleática, inclusive com o hierarquismo contido no sistema platônico e com a teoria aristotélica do “lugar natural”. Com acentua Carlos Moyá, “a constituição política de Clístenes e a cosmologia física de Anaximandro se correspondem sistematicamente”. Devo aliás anotar, aquí, que Antero já escrevera frases semelhantes, e que Spengler incluiria este modo de ver em seu grandiloqüente painel histórico. No caso de Roma, que pertenceu ao mesmo orbe cultural grego, teve-se o fortalecimento da dimensão vertical do poder, bem como uma espécie de tratamento mitológico da própria cidade, inclusive através da literatura, sobretudo com a Eneida, que legitimou o império e fez do latim um instrumento de perenização da urbe.
A experiência ocidental propriamente dita, além de recolher a herança grega e romana, assim nas idéias quanto nas formas de vida, assimilou o contributo judaico-cristão e o dos povos autóctones. Também não me demorarei sobre isto. Mas quero expressar que a sucessão de momentos na história tem formado uma acumulação na qual, como Hegel deixou exposto, se tem a “superação” dos estágios um pelo outro e ao mesmo tempo a respectiva conservação.
Quero igualmente ter em vista o processo chamado de secularização (ou de laicização) histórico-cultural, que como se sabe ocorreu no mundo grego a partir do século VI ou V AC, e também no Ocidente a contar do século XV ou do XVI. Secularização como perda ou enfraquecimento dos padrões teológico-religiosos na cultura e na sociedade, e gradativo fortalecimento da dimensão racional: um processo que teve ligação com o chamado Renascimento, com a consolidação da vida urbana e do capitalismo. É relevante mencionar esse processo, porque com ele mudaram de sentido as relações entre a filosofia e a teoria política: passou-se da imagem religiosa do poder (omnis potestas a Deo) para uma visão imanante e antropocêntrica. Aos poucos se passaria, para utilizar o subtítulo de um recente livro de Michel Sennellart, “do regimen medieval ao conceito de governo”. E esta passagem, complexa além de lenta, envolveu diversos conflitos sociais e também, obviamente, mutações doutrinárias, que a seguir abrangeriam a um tempo o advento do cartesianismo e a caracterização do empirismo inglês, mormente com John Locke e com Francis Bacon – contraposição que se repetirá nas diferenças entre as idéias de Edmund Burke e a metafísica da Revolução Francesa.
A contraposição política entre ingleses e franceses implicou sem dúvida duas visões diversas da sociedade e dos homens, e se projetou sobre dois diferentes modos de conceber o Estado e a Constituição: de um lado o Estado conceitualmente monárquico e entretanto parlamentar, com uma “constituição” dita costumeira, e do outro o Estado pós-feudal banhado de racionalismo e de ânimo polêmico. Naquele um direito parcialmente consuetudinário e marcado por emblemas históricos, neste um direito sistematizado e posto por escrito, entendido quase intemporalmente como ordem.
A criação do modelo constitucional francês foi antecedida, como se sabe, pela formação dos “Estados Unidos” que poucos anos antes discutiram a alternativa entre confederação e federação, estruturando o regime federal dentro de uma constituição lacônica e deixando para os Estados-membros e suas respectivas constituições a regulamentação de diversos problemas. A velha constituição quase inglesa quase não entrou naquela obra, fruto do racionalismo e das leituras clássicas dos fathers, mas o acendrado pragmatismo britânico entrou. Além, anote-se, da religiosidade puritana, de então para hoje estudada por tantos autores.
Vale recordar que na chamada Idade Média não houve, segundo entendem muitos autores, a diferença entre direito público e direito privado, que em geral vigora quando existe um Estado definido e que ressurgiria quando do constitucionalismo na área continental-européia. A teoria do Estado e a teoria das formas do governo, bem como o “direito público” em seu conjunto, eram tratados mais pela filosofia política do que pelos juristas propriamente ditos: os juristas divididos em civilistas e canonistas, mais do que em privatistas e publicistas, como ocorreria depois. Essa distinção entre privatistas e publicistas, logo apoiada pelas alusões da doutrina a um direito público e outro privado, caracterizou claramente a presença de um Estado, que a rigor não existira durante a Idade Média. Bernard Groethuysen estudou, em poucas mas notáveis páginas, em seu livro Filosofia da Revolução Francesa, a reorganização política e social da França através de um direito público fundado sobre o direito natural e de um direito privado fundado sobre a propriedade e o direito romano.
Na verdade a experiência histórica das revoluções liberais, às vezes ditas despectivamente burguesas, não foi simples repetição de formas vividas pela polis grega, ou pelo senado romano. Foi um correlato da secularização e do iluminismo ocidentais. Equivocavam-se portanto, ou ao menos exageravam, os companheiros de juventude de Hegel, e ele também, quando viam na Revolução Francesa a restauração da cidade antiga. Até porque, no grande movimento integrado por Danton e Robespierre, não faltou um ingrediente utópico. Em uma passagem de seu genial ensaio “Topía y utopía”, Eugénio Imaz registrou um ponto de contato entre Rousseau e Platão, quando o pensador do Contrato Social, contrapondo a volonté générale à ragion di stato, resgatou a figura da comunidade contra a opressão da sociedade; registrou ainda Imaz o forte elemento utópico na teoria da república-noúmeno de Kant, que a seu ver já antecipava a distinção entre natureza e cultura, adotando, na passagem do mundo físico ao mundo histórico, a hierarquia (aliás vinda de Platão) entre o sensível e o inteligível.
Importará sublinhar que em Kant se completou a primeira linha do pensamento liberal moderno, com a visão do direito como organização das liberdades e com o convite ao saber crescente e aberto (sapere aude). Em Comte, como sabemos, viria o saber como correlato da autoridade e com isso um novo despotismo esclarecido – este aliás um ideal sempre presente nas formulações ideológicas do Ocidente.
A estas alturas podemos retomar as referências à Constituição. A Revolução, por voz de Rousseau, fundamentou sobre a vontade geral a obrigatoriedade da lei, da qual derivaria conceitualmente a da constituição, que os norteamericanos haviam pouco antes definido como lei suprema, paramount law, e que os franceses, na declaração de 1791, afirmavam consistir basicamente na separação de poderes e na garantia dos direitos. Ao fixar esta sagrada ossatura, o sistema de poderes e o dos direitos, e ao vincular a constituição (como toda lei) ao alicerce da vontade geral, os revolucionários a um tempo colocaram e resolveram o problema das relações entre legitimidade e legalidade. Não cancelando aquela ou fundindo-a nesta, como fariam os formalismos do século vinte, nem tingindo os conceitos com as oscilantes cores das ideologias, mas pensando o problema do geral dentro da ordem jurídica: a ordem justificada pela base ontológica e instrumentalizada pela expressão da vontade.
Todas estas coisas, porém, e com isto torno a enfatizar um ângulo especial do tema, pressupuseram o processo de secularização. Era realmente, o dos homens que criaram o constitucionalismo, um mundo novo: ocorrera a chegada dos brancos às Américas, da qual resultavam várias novidades políticas, econômicas e antropológicas; ocorrera a etapa dita absolutista do Estado moderno, correlata de configurações doutrinárias como a razão de Estado, as utopias renascentistas e o Leviatam de Hobbes.
Entende-se, assim, que a teoria da constituição trazida pela revolução, com base na teoria rousseauniana da lei, consistiu sob certo aspecto em passar de uma sacralidade a outra. A vontade comunitária aparecia agora junto aos conceitos de povo e de nação, que não existiam (ou quase) ao tempo dos feudos e da aristocracia, quando a dimensão comunitária valia como ligação direta entre o monarca e os súditos.
Vale advertir que não faltaram, desde o essor das revoluções, movimentos e posições em sentido contrário: no caso o conservadorismo de Rivarol e de De Bonald, na própria França, bem como, logo a seguir, o de Benjamim Constant. Nem deixaram, certos autores, de constatar nas formas constitucionais a influência da Teologia, como o fez Carl Schmitt em seu célebre Politische Theologie, de 1922. E como aliás o fizera também, em 1888, no Recife, Tobias Barreto, para o qual as “teorias correntes, relativas ao supremo poder do Estado”, contêm no fundo um “sedimento de ortodoxia”.



* * *

Um olhar incisivo sobre as trajetórias doutrinárias, dentro do Ocidente, revela em realidade mais de uma linha. Uma delas, que veio do mundo latino e do direito romano, através da época bizantina, com a imagem de uma fé acoplada ao saber e à sacralidade do poder. Outra com as marcas do mundo germânico, passando pelo direito inglês que durante o medievo se estruturou como um sistema peculiar, e pelo modelo político feudal. Outra ainda, a do racionalismo escolástico, refeito e reentendido a partir do século XVII pelo racionalismo cartesiano, do qual em grande parte viriam o iluminismo e o cientificismo.

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No século XX confluem os positivismos (filosóficos e jurídicos), bem como os logicismos; o bergsonismo se constrói como uma espécie de evolucionismo espiritualizante, e a fenomenologia como uma nova disciplinação formal do pensamento. A teoria dos valores, oriunda do néo-kantismo ainda oitocentista mas inteiramente viável no novecentos, influi sobre as ciências sociais, sobre a problemática jurídica em especial. Ocorre o que alguns chamariam “releitura” das grandes correntes: na verdade, durante a onda de inovações e de fracionamentos doutrinários, uma coisa que permaneceu no século passado foi precisamente a necessidade de revisões e de reexames.
Nos domínios do direito, o egrégio problema da interpretação – e também o do direito natural – provocaram reflexões de grande importância. Assim com o inicio da crise dos códigos e do ideal de sistema: quebrou-se o padrão pandectístico, iniciado nos tempos de Savigny e de Ihering; entrou em crise o modelo conceptualista do saber jurídico; surgiu o pragmatismo radical do freie Recht. Durante o século XX o tema do direito natural, já enriquecido desde os tempos de Locke com a alusão aos direitos naturais, estendeu-se e complicou-se com o advento dos direitos humanos e dos ditos “fundamentais”. Na transição, tempo de revisões e de sutilezas, o propósito do “direito livre” conjugou-se ao sociologismo de Eugen Ehrlich e à versátil teoria dos valores. Mais convergência do que ecletismo, resultou deste encontro uma série de suspicácias conceituais, alimentadas pela disciplinação neokantiana e pelo apuro fenomenológico (ambas as coisas, aliás, presentes na Teoria Pura de Kelsen). Entretanto latejava a insistência da busca de fundamentos: fundamentos como conexão com camadas conceituais mais fundas.
Esta busca foi um apelo à história dos conceitos, que já se encontrava em Hegel e na heterogênea obra de Croce, mas também em Dilthey, minudente e profundo, como estaria em Ortega sob a forma de algumas sacudidelas conceituais. Daquele apelo viria também, a partir de meados do novecentos, o movimento hermenêutico, principalmente após o livro Wahrheit und Methode (Verdade e Método) de Hans-Georg Gadamer. O êxito dessa obra pressupôs e ao mesmo tempo alimentou a hermeneutização do pensamento filosófico, iniciada desde os tempos de Schleiermacher e de Schlegel.
Veio ocorrendo também, como se sabe, dentro do pensamento universitário ocidental, a crescente conjugação dos problemas do Direito Constitucional com os da Teoria Geral do Direito: passou-se da Teoria clássica da interpretação, ligada ao modelo de Savigny, que no primeiro volume do seu Sistema falava dos quatro elementos da interpretação (o gramatical, o lógico, o histórico e o sistemático), ao modelo gadameriano, fundado em boa parte sobre Dilthey e Heidegger, e portador de conceitos como o de horizonte e o da compreensão.
A junção da Teoria Geral do Direito com a parte geral do Direito Cnstitucional tem tido como um de seus correlatos o advento, talvez localizado e passageiro, do chamado direito civil constitucional, ligado aos ensinamentos de Perlingieri, e no fundo vinculado aos novos modos de ver o próprio ordenamento jurídico, e de ver ou rever as antigas lindes entre direito público e direito privado. Falo disto, porém, sem ignorar que estes temas – o ordenamento e a distinção ou relação entre público e privado – não ocorrem com a devida presença nos autores mais recentes, embebidos e imantados por questões outras, mais presas à lógica e à teoria da argumentação.
Com isto aludo também ao chamado realismo constitucional, em cujo conteúdo pode-se ver um impreciso retorno ao juspositivismo, por conta desde logo de uma visão antimetafísica e não-filosófica do direito, sem embargo de uma visão crítica, isto é, não legalista, da norma constitucional. Na verdade existe hoje, isto é, nos decênios mais recentes, um impasse ou ao menos uma relação ambígua entre o juspositivismo legalista, de ilustres raízes no século XIX, e as teorias da interpretação que datam de meados do XX: inclusive o que denominei, certa feita, de jusnaturalismo hermenêutico.

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Retornemos contudo ao tema da secularização, aflorado desde o início. De fato já não temos, a estas alturas da longa experiência jurídica ocidental, nenhum Estado com fundamento teológico; os que ainda existem estão no Oriente Médio e no mundo islâmico. Ocorrem porém formas eventuais de sacralidade em certas coisas, uma sacralidade como que residual que só remotamente reflete o teologismo medieval. Além de resquícios que podem, de certa forma, ser encontrados em determinados institutos jurídicos, como a irretroatividade da lei ou o princípio da boa fé.
Sob certo aspecto, e já falamos disto, a seqüência de formas políticas no Ocidente moderno parece realizar, impliciter, alguma coisa da Aufhebung hegeliana. Tal como na Grécia a substituição das estruturas iniciais pela constituição democrática a partir de Clístenes, assim a superação da ordem feudal e aristocrática pela monarquia absoluta, depois o cancelamento desta pela república constitucional. Como se sabe, Alexis de Toequeville foi dos primeiros a registrar a permanência dos componentes administrativos do ancien régime mesmo dentro do Estado constitucional pós-Bastilha. Importa considerar a conscientização de tudo isto pelo pensamento filosófico europeu, não somente por parte dos primeiros teóricos franceses, como Sieyès por exemplo, mas também pelos críticos da Revolução, senão ainda pelo próprio Hegel em seu estudo sobre a Constituição da Alemanha. Conscientização que prosseguiu na etapa seguinte, com novas cumulatividades, com a passagem do Estado liberal ao “social” sem prejuízo da persistência da ossatura constitucional. Caberia aqui uma palavra sobre a importante crítica de Carl Schmitt ao Estado liberal, que deixaremos para outra ocasião.

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De certa forma, e conforme já referido, os dois grandes caminhos, dentro de nosso tema, foram a passagem da teologia e do Estado absoluto ao Estado secularizado e à “metafísica crítica” de Rousseau, e também o trânsito do apego clássico às estruturas e fundamentos ao entendimento hermenêutico dos conteúdos e das conotações. A estes, aliás, mas aí entra outro ângulo, sucederia no século XX a valorização dos procedimentos e da linguagem, de resto freqüentemente exagerada. A este outro ângulo vem correspondendo um outro tema, seu correlato, o da ênfase sobre o papel do judiciário e sobre o trabalho dos juízes, por sinal antecipada desde 1957 no livro Von Gesetzesstaat zum Richterstaat (Do Estado das leis do Estado dos Juizes), de René Marcic.
De tudo isto gostaria de reter a alusão à hermenêutica. A referência de Montesquieu às leis como relações derivantes da natureza das coisas veio a substituir a idéia teológica das leis como obra divina: com a secularização o homem “cai” para dentro, da sociedade ou de si próprio; e as relações internas, que são agora a sua realidade, encontra a vontade geral que se expressará pela lei. Do mesmo modo o entendimento das leis, da constituição inclusive, já não se fará com alusão à transcendência, mas com o apoio de uma compreensão, de uma hermenêutica que será a um tempo histórica e axiológica. Mencionamo-lo acima.
A obra de Gadamer, já referida, deu expressão integral a uma tendência que, como dissemos, assomou no espírito do Ocidente desde o idealismo alemão e desde as primeiras formas de interpretação, com a Escola francesa da Exegese: sempre se cita a frase irritada de Napoleão, que via nos modestos comentários de Malleville e de Toullier uma ameaça ao seu código.
Na verdade as novas formas de ver, trazidas desde o século XVII pela secularização, incluíram a idéia de que o plano institucional da vida dos homens é composto de coisas que jamais estão acabadas. Assim o regime político e o econômico, assim a ordem jurídica. Daí a experiência constitucional refazendo-se sempre, sempre questionada e sempre inconclusa. Na transição para o século XIX, Hegel entendeu a filosofia como política, e vice-versa: ambas como história e como conceito.
Na transição para o século vinte e um, o pluralismo que ocorria no domínio filosófico correspondeu ao que existia no panorama político. Ou que deveria existir, fosse maior a tolerância, ou melhor, a flexibilidade das grandes potências e menores os problemas estruturais dos países mais pobres. Com o que se vem chamando globalização, as desigualdades continuam como no tempo de Gengis Kan, ou no de Theodore Roosevelt. E com isto o pensamento jurídico e constitucional segue dependendo de conceitos centenários, senão milenares. O que é bom por um lado, por outro nem tanto, e desta dualidade resultam novos desafios doutrinários.
Somente com uma reavaliação histórica que inclua a experiência constitucional em sua relação interna entre fundamentos e aplicações, se poderá reintegrar em cada caso a realidade jurídica com os ideais doutrinários, e do mesmo passo revitalizar o pensamento crítico em sua concreta função existencial.

Recife, 22 set., 2006


(*) Conferência pronunciada no II Colóquio internacional do Instituto Jurídico Interdisciplinar, na Universidade do Porto, em 30 de novembro de 2006.