segunda-feira, 13 de julho de 2009

Do medo à dialética

A palavra dialética, como todos os conceitos fundamentais da filosofia, ou melhor, como todas as palavras, tem uma história. A diferença é que a história das palavras às quais foi atribuída dimensão filosófica, que são chamadas categorias, produz significados que dependem, basicamente, não do uso coletivo, mas do sentido que adquirem no contexto de sistemas de pensamento determinados. Numa primeira vez, elas são arrancadas do uso comum, quer dizer, de sua pré-história filosófica, refundidas e ampliadas em suas determinações para que possam integrar a abstração e a generalidade do discurso filosófico. Consta que, em relação à dialética, teria sido Sócrates o primeiro a fazê-lo. Pelo menos, é o que nos diz Platão, que colocou estas palavras na boca de Sócrates: "Mas a quem sabe a arte de interrogar e de responder, que outro nome posso dar senão o de dialético?"(1) .

Daí em diante, a palavra dialética esteve presente nos principais sistemas filosóficos e ela mesma, em seus significados, evoluiu e se transformou sob a influência de dois tipos de dialética. A primeira, no sentido platônico (a partir do conceito que teria sido originalmente indicado por Sócrates), isto é, em virtude da "arte de interrogar e responder" a que se dedicam os filósofos. A segunda, em função das contradições e da transformação histórica que sofreu o próprio mundo que a filosofia procura pensar e entender. Neste último sentido, já começamos a penetrar na significação moderna que a filosofia atribui ao conceito de dialética, o que, efetivamente, nos interessa discutir neste texto. A formulação mais complexa e profunda dessa categoria deve-se, sem dúvida, ao maior de todos os filósofos idealistas: Georg Wilhelm Friedrich Hegel, nascido em Stuttgart, na Alemanha, em 1770. A grandeza e, ao mesmo tempo, a ambigüidade do sistema de Hegel que, por um lado, considerava a Revolução Francesa como a última etapa revolucionária da história da humanidade (admitindo, daí em diante, reformas e aperfeiçoamentos progressivos) e, por outro, continha no seu interior a explosividade da idéia de dialética, não poderia deixar como herança apenas uma simples escola filosófica. E, de fato, deixou um patrimônio que se subdividiu em várias correntes que penetraram praticamente todo o pensamento posterior. A "esquerda" e a "direita" hegelianas, como foram chamadas as duas vertentes iniciais, se inclinavam para um dos pólos da contradição latente na filosofia de Hegel. A primeira, em sua maioria simpatizante de uma posição política democrático-radical, estava mais interessada no caráter subversivo da dialética. Mas era uma época de efervescência e confusão das idéias. "Os jovens hegelianos, subversivos em religião, mantinham-se por vezes conservadores em política - como Strauss - ou inversamente." (2) Enquanto isso, a "direita" hegeliana buscava, sobretudo, ser fiel ao sistema global da concepção do mestre, ressaltando suas implicações religiosas e conservadoras.

O "pássaro" antecipado

A dialética elaborada por Hegel permaneceu, principalmente, em oposição ao sistema hegeliano e suas idéias políticas, no interior do pensamento revolucionário de Karl Marx, numa perspectiva materialista. Inicialmente um "jovem hegeliano", mais tarde Marx iria se tornar - junto com Engels - o fundador de uma concepção do mundo que se propôs ser, a um só tempo, interpretação e instrumento teórico da luta revolucionária do proletariado. O marxismo assumiu, desse modo, uma tarefa ambiciosa, até então jamais tentada pelas filosofias anteriores.

As concepções filosóficas, em qualquer época, sempre expressaram interesses sociais e históricos, participando de forma efetiva, mas indireta, das lutas políticas. Sua relação com essas lutas, embora por vezes tenha sido intensa, nunca havia sido interiorizada no próprio sistema filosófico como dimensão constituinte de elaboração teórica. Ou seja, os filósofos interpretavam o mundo de maneira crítica ou apologética e essa interpretação retornava à arena social e política, incentivando o conformismo, a reforma ou até a revolução. A idéia de uma filosofia que se propusesse a modificar o mundo, não apenas consciente e deliberadamente, mas que fizesse dessa atividade e do avanço das ciências em geral, tanto o seu critério como a fonte de sua autocrítica e desenvolvimento, é a tese fundamental do marxismo. E aqui temos, em conseqüência, o sentido mais geral da categoria medular do marxismo, já numa abordagem materialista, a saber, a práxis.

Hegel havia atingido plenamente a autoconsciência da filosofia como interpretação do mundo e epitáfio de situações históricas determinadas, agregando, também, a tese da autoconstrução humana através do trabalho. Ele afirma que cabe à filosofia desvendar o curso geral do mundo, desde de sua gênese lógica até o presente histórico (e acredita que a sua concepção é o coroamento desse processo), mas que ela chega sempre muito tarde para realmente transformar. Para Hegel, há uma Razão que atribui um sentido à história. Ela não é um Deus tal como a religião tradicionalmente o concebe, pois não está separada do mundo, não é anterior (só o é logicamente) nem exterior ao universo. Mas é exterior apenas à consciência imediata dos homens e aos seus atos, que perseguem fins particulares. Porém, pela conjugação desses atos ela acaba se realizando. Cabe à filosofia, portanto, revelar essa Razão, torná-la consciente de si mesma através da consciência humana, já que ela está contida integralmente na realidade do mundo. "A missão da filosofia - diz Hegel - está em conceber o que é, porque o que é, é a razão." (3)

Observa-se, então, que o conceito de práxis em Hegel, ou seja, a idéia da autoconstrução humana através da própria atividade dos homens (que tem no desenvolvimento das formas sociais do trabalho a sua base histórica), assume um conteúdo, por assim dizer, "invertido". Não são os homens que se constróem à medida que constituem sua vida material, sobre a qual ergue-se uma razão humana que, progressivamente, pode atribuir-se fins cada vez mais livres e autônomos em relação aos constrangimentos imediatos desta vida material. É a Razão que se constrói, através da ação histórica dos homens, num sentido livre e autônomo. Sendo assim, não poderia mesmo a filosofia assinalar mais do que um grandioso epitáfio para cada época que vai morrer.

"Para dizermos mais alguma coisa sobre a pretensão de se ensinar como deve ser o mundo, - afirma Hegel - acrescentare-mos que a filosofia chega sempre muito tarde. Como pensamento do mundo, só aparece quando a realidade efectuou e completou o processo de sua formação. O que o conceito ensina, mostra-o a História com a mesma necessidade: é na maturidade dos seres que o ideal se ergue em face do real, e depois de ter apreendido o mundo na sua substância, reconstrói-o na forma de um império de idéias. Quando a filosofia chega com sua luz crepuscular a um mundo já a anoitecer, é quando uma manifestação de vida está prestes a findar. Não vem a filosofia para rejuvenescer, mas apenas reconhecê-la. Quando as sombras da noite começam a cair é que levanta vôo o pássaro de Minerva." (4)

É verdade que as filosofias avançadas de cada período histórico não nascem para rejuvenescer, nem, tampouco, apenas para "reconhecer" o que está findando. Às vezes, aparecem inclusive antes que uma manifestação de vida - um período histórico - esteja prestes a findar. Prova-o o marxismo, cujo "pássaro de Minerva" levantou vôo antes do capitalismo completar o processo de sua formação, para interpretar e antecipar, para criticar teoricamente e indicar o caminho prático da transformação. Em que pese o caráter relativamente inusitado da tarefa, o marxismo demonstrou que pode mover o mundo, mesmo que o tenha feito até agora num sentido incerto e contraditório. A verdade é que Marx fez mais do que reconstruir o mundo sob a forma de um império de idéias, pois suas idéias alteraram profundamente a história e certamente continuarão a fazê-lo.

A razão como sujeito

A idéia de práxis em Hegel implica numa autoconstrução na qual a Razão é o verdadeiro sujeito e os homens reais são o predicado, embora a atuação desse predicado na história seja condição para o desenvolvimento da Razão enquanto sujeito. O marxismo inicia o resgate teórico do sujeito real na história porque concebeu um novo materialismo, que subverteu a ordem lógica e ontológica da proposição hegeliana, reconhecendo, contudo, o desenvolvimento do "espírito" através da história. Quer dizer, evitando estabelecer uma relação simples e natural entre os homens concretos e reais como sujeitos, a razão como predicado e a natureza como, digamos, "objeto direto". A relação entre os homens e destes com a natureza aparece como uma relação histórica, não como algo dado imediatamente pela percepção. Assim, ao aceitar o pressuposto materialista tradicional de que o ser precede a consciência ou, noutras palavras, de que a matéria é anterior ao pensamento, Marx não considerou este último como algo que deriva diretamente da matéria e sim algo que se produziu em sociedade, a partir da apropriação coletiva da natureza por meio do trabalho. Os homens são seres naturais por sua origem, mas se afastam cada vez mais desse fundamento natural (nunca completamente) à proporção que o dominam conscientemente, construindo, com base nesse afastamento, a sua própria essência humana como ser livre, ou seja, como ser que se atribue finalidades de modo progressivamente mais consciente e radical.

Marx assimilou, nessa medida, o princípio ativo da consciência, o aspecto subjetivo do homem que era privilégio dos sistemas idealistas - especialmente de Hegel - que, no entanto, faziam dele uma dimensão mistificada. Em conseqüência, unindo a premissa materialista e o aspecto ativo e criador da subjetividade humana, deu um novo conteúdo ao conceito de práxis. Agora ele significa uma relação em que a matéria é ontologicamente anterior ao pensamento, a atividade prática na história é logicamente anterior à consciência e esta, por seu turno, é tanto lógica quanto ontologicamente superior à matéria e à atividade prática. Embora, evidentemente, o pensamento não possa existir sem a matéria nem desenvolver-se sem a prática. Em outras palavras, o "momento separatório", essencialmente humano, é a consciência. O que dignifica o homem não são suas vísceras nem o fato, em si mesmo, de usar instrumentos, cavar a terra para plantar e produzir artefatos os mais variados. O que o dignifica, porque o define, é o fato de pensar no que faz e em si mesmo. Embora a premissa materialista não nos permita esquecer nunca que ele jamais seria um homem sem suas vísceras, não teria desenvolvido seu pensamento se não tivesse usado instrumentos, cavado a terra para plantar e produzido os mais variados artefatos. Assim, gerado a partir do universo natural, condicionado pelo mundo que ele mesmo vai construindo através da história, enquanto realidade objetiva e subjetiva, ele escolhe seu futuro entre alternativas reais e forja novas condições.

É por isso que Marx pode colocar uma cunha entre as duas missões propostas por Hegel para a filosofia - interpretar o mundo e, ao fazê-lo, escrever o epitáfio de cada época, - ou seja, pode conceber, no contexto de uma atividade prático-crítica real e não ilusória, a crítica (teórica) e a prática (política) revolucionária.Portanto, é nesse contexto teórico materialista que a práxis, enquanto categoria, ultrapassa a significação meramente explicativa e adquire um sentido revolucionário, já que a partir dela os homens concretos e reais podem ser entendidos como verdadeiros sujeitos da história. A dialética marxista, então, sob a égide desse conceito de práxis, assume um novo conteúdo: não se trata mais de uma dialética do conceito, que se media através da história para reconhecer-se como Razão no interior da Idéia que vai perfazendo o caminho da liberdade. Mas de uma dialética originalmente objetiva que põe o homem no mundo e, o homem, através de sua apropriação prática e teórica desse mundo, se põe como história e dentro desta a própria história do mundo passa a revelar-se como o processo da verdade. O conceito, como pensamento histórico do homem, pressupõe, não a si mesmo como origem do universo, mas como dimensão "separatória" e superior presente na origem da história, embora o próprio conceito (pensamento) se reconheça nessa regressão como logicamente posterior à atividade prática, pois ele descartou-se da ilusão de que é a origem do universo. Assim como o universo revela-se no interior da história humana, através dela, o conceito revela a dialética concreta da natureza e da história mediando-se pelas suas próprias pressuposições (na forma de premissas ontológicas). Isso porque o próprio mundo presente se manifesta mediado pela apropriação prática e teórica realizada na história precedente. Assim, tais premissas devem ser sempre recorrentes e nunca consideradas absolutas.

A Ultrapassagem como processo

Não é o bastante, portanto, fazer como Engels que, quase literalmente, "inverteu" o sistema hegeliano colocando a matéria no lugar da "Idéia" e, em conseqüência, empobrecendo o papel da consciência dignificou exageradamente a matéria, atribuindo-lhe uma teologia que ela não tem. Marx, notadamente nas Teses sobre Feuerbach, foi mais longe. Mas é preciso reconhecer que essa ultrapassagem (no sentido de superação) de Hegel pelo marxismo deve ser considerada como um processo em andamento, um caminho que foi iniciado, mas não concluído. Não é por acaso que Lênin, depois da revolução, num artigo escrito dois anos antes de sua morte - sobre o "materialismo militante" - propõe a criação de uma "sociedade dos amigos materialistas da dialética hegeliana". Qualquer tentativa de pensar o marxismo fecundamente sem reconhecer a grandeza da herança hegeliana, como pretendem certos "marxólogos estruturalistas", é uma tarefa vã que prossegue no curso das adulterações stalinistas. O próprio Marx foi o primeiro a reconhecer sua dívida. Há, certamente, uma potencialidade dialética no pensamento de Hegel que não foi plenamente esgotada, embora o princípio idealista do sistema hegeliano deva ser efetivamente rejeitado.

A dialética materialista - ou o materialismo dialético - é a filosofia do marxismo. Ora, se a dialética materialista fundada por Marx só pode ser apreendida em termos filosóficos, temos outra questão implicada no próprio conceito de dialética: a natureza da filosofia.

O lugar da filosofia

Há uma articulação radical entre filosofia e política, ou seja, entre a filosofia e o fazer presente da história. Mas essa relação não indica uma correspondência imediata ou mecânica entre proposições filosóficas e suas conseqüências políticas. O pensamento filosófico e as teorias políticas envolvem níveis diferenciados de abstração e generalidade, cada um com uma forma própria de pensar e categorias especiais. No entanto, explicitamente ou não, toda a ação política envolve pressupostos sobre a natureza e o funcionamento do fenômeno político. Ou seja, há uma "teoria" mesmo que seja inconsciente, que oferece suporte e sentido à ação política. Num nível mais amplo de generalidade e mais elevado de abstração, existem premissas que dão suporte e sentido a todas as teorias particulares e a todos os atos humanos, sejam elas conscientes e explícitas ou não. Esse é o lugar da filosofia, sendo que o seu núcleo é a questão ontológica, a primeira premissa entre as primeiras: O que é o mundo em que vivemos e o que somos nós em relação a ele? Raramente o marxismo foi entendido como ontologia, enquanto que o elemento filosófico fundante da ação de Marx foi ter elaborado em linhas gerais uma ontologia histórico-materialista, superando prática e teoricamente o idealismo lógico-ontológico de Hegel.(5)

O que impede ou dificulta a percepção de muitos autores em relação ao objeto da filosofia é a generalidade do discurso a que ela se propõe, em virtude de sua vocação. Aliás, cada sistema filosófico, segundo o seu conteúdo, parece conceituar diferentemente a própria disciplina que justifica o seu discurso. Isso tem levado alguns a concluir que a filosofia é um diálogo de surdos: cada um fala sobre os seus temas preferidos, que parecem ser objetos arbitrariamente escolhidos. No entanto, a filosofia continua dando o que falar. Concluída e finalizada com Hegel, em vias de ser "abolida" pela sociedade comunista por meio de sua realização prática, tal como aparece no jovem Marx, dissolvida nas ciências naturais por Engels, estigmatizada e condenada à morte sem honras através de Comte, rebaixada a ser mera luta política travada no terreno teórico, segundo Althusser, enfim, assassinada e renascida no ato, a filosofia continua sendo a convergência teórica mais radical de todas as diversidades e confrontos. O problema é que só se pode matar a filosofia filosoficamente, como já o disseram alguns, isto é, produzindo outra filosofia.

A filosofia tem um objeto, embora não seja uma ciência no sentido operatório que esse conceito adquiriu nos últimos trezentos anos. Trata-se de um conhecimento, um "saber", que é o pressuposto de todos os atos e conhecimentos particulares - mas também do sujeito e de sua liberdade de escolher entre alternativas concretas, - ao mesmo tempo que estabelece algum tipo de apropriação desses conhecimentos e da liberdade do sujeito. O objeto da filosofia é o mais amplo de todos. É a própria realidade em sua máxima amplitude, pois inclui, enquanto seu objeto, não apenas tudo o que existe objetivamente, mas ainda uma parte do existente reconhecida como sujeito em sua essência (os homens). A filosofia, portanto, deve dar uma resposta à questão da totalidade no sentido mais abrangente dessa categoria. Deve oferecer algum tipo de explicação ao problema da realidade em geral como um todo estruturado e racional, embora não implique, necessariamente, num sistema fechado, exaustivo e absoluto, como o demonstra a dialética materialista. É o que indica Karel Kosik quando afirma que à pergunta "como se pode conhecer a realidade?", precede outra; "O que é a realidade?". (6) A filosofia, mais precisamente o seu núcleo ontológico, é a pressuposição sintética fundamental do pensamento enquanto saber sistemático. Ela não decorre de uma estrutura lógica anterior. Ela mesma é a estrutura lógica anterior.

Dialética: a ontologia e o método

Nos Cadernos Filosóficos, que constituem anotações de um estudo sobre Hegel, Lênin supera em vários aspectos a visão simplista da relação sujeito-objeto que aparece em Materialismo e Empirocriticismo. Não obstante, mesmo nos "Cadernos" ainda não destaca a anterioridade da ontologia na constituição do conhecimento filosófico. Ele fala de uma "coincidência" entre a Dialética (ontologia), a Lógica (formas de pensar a realidade e método de abordá-la) e a Teoria do Conhecimento (análise teórica das possibilidades e da natureza do conhecimento). Nessa "fusão" filosófica, da qual não se destaca a prioridade ontológica, fica difícil ultrapassar plenamente a idéia de uma "dialética da natureza" como premissa teórica fundamental do marxismo. Noutras palavras, a existência de uma dialética da natureza é um pressuposto materialista que está contido na ontologia, mas esta é mais complexa do que aquele simples pressuposto. A idéia de práxis, esta sim, porque contém o pressuposto de uma dialética da natureza e, ao mesmo tempo, a apropriação histórico-social (prática e teórica) dessa dialética por outra que envolve a subjetividade e a liberdade, é a premissa filosófica fundamental do marxismo.

É por isso que o núcleo ontológico do marxismo tem na práxis a sua categoria-chave, à medida que permite reconhecer tanto a dialética da natureza como a dialética histórica, a unidade e a oposição entre elas. Isto é, a identidade originária do mundo como dialética da natureza, que forma o substrato natural dos homens e do seu mundo histórico, e a ruptura ocasionada pela emergência da humanidade como subjetividade e consciência. Desse modo, o pensamento filosófico pode apreender a complexidade de mediações que escapam diante da pressuposição simplificadora de uma "dialética da natureza", da qual o homem emerge como mero epifenômeno, por mais que se lhe atribua, depois, qualidades especificadoras.

Portanto, a palavra dialética envolve três sentidos e não apenas dois. O primeiro como dialética da natureza: uma espécie de "lei universal" do mundo enquanto objetividade considerada em si mesma, uma qualidade do ser entendido como estrita naturalidade. É esta dimensão da dialética que, se for tomada como ontologia, tal como fez Engels, leva inevitavelmente ao naturalismo. O segundo sentido da palavra dialética é propriamente o da ontologia, naquela perspectiva que o marxismo aponta nas Teses sobre Feuerbach, ou seja, sob o ângulo da práxis como categoria central da filosofia. Aqui, a dialética do ser natural é um aspecto do pressuposto que implica, também, a mediação histórico-social em que a dialética da natureza se manifesta pela apropriação humana, isto é, como ruptura e unidade entre a natureza e a história, entre o ser e a consciência, entre o objetivo e o subjetivo, que se repõem mútua e constantemente num patamar cada vez mais elevado. Para o marxismo, esse deve ser o conteúdo filosoficamente prioritário da dialética.

O terceiro sentido é a dialética como método e teoria do conhecimento, numa única dimensão lógica dotada de uma vocação crítica e autocrítica. Este último sentido, a dialética como método e teoria do conhecimento, decorre intrinsecamente da dialética como ontologia ou, se quisermos, do materialismo dialético como a filosofia do marxismo. A aplicação do método dialético é, sem dúvida, o problema mais difícil, já que, assim entendido, o método não se constitui em regras formais, mas igualmente um momento dinâmico da apropriação teórica do mundo. Uma ponte, apenas relativamente estável, que vai do conhecido ao desconhecido. Ele pressupõe a dialética da natureza, a unidade do mundo enquanto mundo natural e a ruptura ocasionada pela emergência da subjetividade do homem. Além disso, a possibilidade permanente de uma nova unidade no bojo dessa ruptura - à proporção em que esta, por outro lado, se aprofunda - através da crescente apropriação prática e teórica da realidade pelo homem. Somente com esse conteúdo é que o materialismo dialético, aplicado à particularidade da história, resulta no materialismo histórico.

Dificuldade filosófica

A dificuldade do método dialético, inerente à complexidade das mediações que ele encerra, para efeitos de exposição, pode ser decomposta em algumas de suas determinações.

O método dialético quer pensar a transformação e o fluxo, as transições, a evolução e a revolução, o movimento perpétuo e universal da matéria e do pensamento, do objetivo e do subjetivo, da prática e da teoria. Para pensar a realidade, no entanto, é necessário uma concepção geral, ou seja, premissas filosóficas amplas, mas determinadas. Caso contrário, torna-se impossível qualquer conceito. Considerados isoladamente, fora de quaisquer pressuposições, os fenômenos perdem o sentido e não podem ser apreendidos pela consciência. Aliás, os próprios conceitos que utilizamos para pensar - e até mesmo a linguagem em geral - envolvem premissas imediatas e mediatas; constituem conhecimentos anteriores que, numa regressão lógica, podem ser percebidos como pré-conhecimentos em graus de generalidade e abstração crescentes.

Além disso, se entendermos como absoluta a afirmação de Heráclito de que "nunca nos banhamos no mesmo rio", jamais poderemos pensar num rio concreto e sequer poderemos nos banhar em qualquer rio determinado. Se nada fica do movimento universal e tudo, efetivamente, existe no tempo, só podemos nos banhar num fluxo sem nome, sem identidade, num rio que não é rio, numa água que não é água. E mesmo que conseguíssemos, tampouco seríamos nós, pois seríamos o outro de nós mesmos a cada instante absolutamente finito e abstratamente dialético.

Noutras palavras, se a persistência não estivesse efetivamente presente no transitório, a substância no fluxo, a eternidade no presente, o infinito no finito, não seria possível qualquer conceito capaz de apanhar a essência da realidade. Os conceitos poderiam ser, no máximo, aproximações operatórias. A filosofia, por seu turno, poderia tão somente e, na melhor das hipóteses, elaborar um discurso negativo sobre a ontologia e justificar a manipulação operatória sobre o mundo. Pelos caminhos tortuosos de uma dialética abstrata chegaríamos a um agnosticismo de fundo positivista. Para admitir um discurso ontológico afirmativo seria preciso uma filosofia a cada dia, a cada hora, a cada minuto, a cada segundo, e assim sucessivamente.

A transformação quando considerada de modo absoluto, não dialético, quer dizer, abstratamente separada de seu oposto que é a "acumulação" ou a permanência - que é a substância - conduz na melhor das hipóteses ao agnosticismo, senão ao absurdo. Em qualquer desses casos, não poderemos pensar e entender aquilo que pretendíamos ao pressupor a realidade como dialética: a realidade como movimento e concretitude. Logo, reconhecer o fluxo eterno e a transformação permanente ainda não é o método dialético, embora seja seu pressuposto e condição. É preciso admitir um nexo entre os momentos de qualquer processo para reconhecer a concreticidade do mundo, isto é, a realidade como totalidade em movimento, a constituição da realidade concreta não apesar da transformação, mas através dela.

Já podemos perceber, então, que a dificuldade filosófica para pensar a dialética do mundo e aplicar o método correspondente, enunciada acima, não é intransponível. A constituição daquilo que é permanente se dá na própria transformação. A identidade surge, não de uma suposta estática universal ou de uma astúcia paralisante do conceito, mas na forma de uma substância objetiva cuja essência cabe ao conceito revelar e apropriar-se. A identidade, tanto no tempo como no espaço, não surge de um mundo igual a si mesmo, fixo no tempo, homogêneo no espaço, mas como substância que se produz no interior do fluxo e através da diversidade.

Essa dualidade, unidade contraditória entre fluxo e permanência, diversidade e identidade, exige uma filosofia definida, com premissas ontológicas estabelecidas claramente. Mas radicalmente humilde em sua vocação autocrítica, embora severa e revolucionária em sua vocação crítica e demolidora. O marxismo, como filosofia dialética do nosso tempo, deve, por isso, questionar-se constantemente sobre suas próprias premissas, tanto sobre aquelas imediatas e particulares quanto sobre as mediatas e fundamentais. Caso contrário, pela fixidez antidialética de seu próprio arcabouço, o marxismo estará traindo a vocação dialética que se propõe realizar enquanto método e, o que é pior, também como práxis revolucionária. Esse é o sentido mais abrangente que podemos atribuir ao conceito de dogmatismo que, sobretudo pela vertente stalinista, mas não apenas por ela, entorpece o desenvolvimento criativo do marxismo e sua eficácia revolucionária. Como se uma concepção que se pretende materialista e dialética, sob a égide da práxis, pudesse dizer sem denunciar sua própria falácia: "tudo se transforma a todo o instante, menos eu que não sou deste mundo. . . ".

Dificuldade lógica

Adotar o método dialético pressupõe compreender a ontologia dialética, isto é, entender a dialética mesma do mundo, tanto da natureza quanto da história, e a inter-relação (dialética) entre elas pela práxis. Isso parece evidente: quem não sabe de antemão que o mundo é dialético, não pode pensá-lo dialeticamente. Mas ficamos diante de um impasse colocado por uma contradição lógico-formal: para compreender o mundo como dialética - e então poder pensá-lo como tal - necessitamos do método dialético. Quer dizer, estamos dentro de um círculo aparentemente vicioso. Para saber algo, é preciso, antes, saber aquilo que estamos tentando descobrir.

O problema aqui, como já nos demonstrou a tradição do pensamento dialético, pelo menos na prática é mais simples. Se não o fosse, as crianças jamais aprenderiam a falar por meio de uma linguagem que desconhecem absolutamente. A Humanidade, por si mesma, resolve essa contradição formal há milhares de anos na prática, ou melhor, através da práxis: a relação entre a teoria e a prática resulta em algo mais do que a soma do conteúdo de cada uma delas. Tal como um casal que gera um filho, o qual, apesar da contrariedade dos pais, é uma terceira pessoa e não uma simples soma ou composição dos atributos e qualidades já existentes no casal.

A práxis implica que, num sistema de referências práticas e conceituais, na atividade em que se relacionam e se produzem o aspecto objetivo e subjetivo, os objetos assumem sentido ao mesmo tempo que as palavras revelam significados. Assim como as crianças aprendem a falar, assim os adultos podem aprender a pensar dialeticamente, embora, evidentemente, estes tenham que fazê-lo de modo deliberado e consciente.

É preciso a consciência do mundo prático, concreto, enquanto realidade mediada pela atividade "prático-crítica", para pensar dialeticamente. A prática sem a reflexão teórica nada ensina, exceto o reflexo condicionado e os músculos. A teoria, voltada para si mesma, com finalidade meramente contemplativa, torna-se vazia de conteúdo. Teorizar sem ter como finalidade e referência a realidade concreta e a sua transformação é, senão uma apologia do existente, um diletantismo inoperante e geralmente presunçoso. O que não implica, bem entendido, que a teoria deva ser uma serva da prática imediata. A prática imediata é que deve ser direcionada pela teoria, embora esta se alimente da prática e seja constantemente questionada, criticada e alargada por ela. O mundo, afinal, não é uma esquina, um sindicato, um bar, um partido, uma cidade ou mesmo um país. Não obstante, todos esses elementos estão legitimamente dentro do mundo.

O percurso lógico da compreensão, sem esquecer que o método dialético é analítico e sintético ao mesmo tempo, vai, fundamentalmente, do abstrato para o concreto, do geral para o particular, do todo para as partes. Portanto, atuar politicamente sobre a realidade, sem a reflexão teórica sobre as totalidades concêntricas que, progressivamente, envolvem os atos até o seu último patamar, que é o lugar da filosofia, é abdicar o papel de sujeito real para apenas representar o papel de "agente".

Dificuldade lingüística

A constituição original do pensamento humano, através de conceitos, como indica Caio Prado Júnior (7) , correspondeu a certas necessidades práticas: os conceitos precisavam identificar para que a consciência percebesse a diversidade, fixar para que fosse apanhado de modo elementar o fluxo e a transformação, separar para depois unir os fenômenos entre si.

O pensamento, mesmo nos seus primórdios, executava o duplo movimento de análise e síntese já assinalado, concebendo, em certa medida, tanto a identidade como a diversidade, a permanência como o fluxo. Mas o conceito, que aparece como a base elementar da linguagem e do pensamento, na sua interioridade surge como expressão predominante da identidade e da permanência. Pelo seu caráter relacional, sobretudo através de sua relação "exterior" no contexto da linguagem é que o conceito expressa, pelo menos inicialmente, o movimento e a diversidade. Em certo sentido, portanto, a própria linguagem, em função das necessidades práticas emergentes - basicamente classificatórias - parece ter se constituído numa estrutura em si dialética enquanto linguagem e, por outro lado, antidialética (o mais correto seria dizer "pré-dialética") no que tange ao caráter elementar dos conceitos. Mas, sob o influxo da dialética do mundo e da práxis, mesmo formalmente ela apresenta potencialidades dialéticas inesgotáveis: pois pode repor, constantemente, a externalidade dialética que realizam os conceitos entre si na totalidade da linguagem, como dialética da interioridade nos conceitos já existentes e na produção de novos. É desse modo que se forma o arsenal dos conceitos e categorias dialéticas. Aliás, a palavra dialética, por si mesma, já é um exemplo eloqüente.

Dificuldade ideológica

A dificuldade ideológica mais fácil de ser superada, para aplicação do método dialético, é aquela produzida conscientemente pelas teorias e filosofias que sistematizam o ponto de vista da ideologia dominante. O mundo é pensado através de premissas que, de maneira explícita ou implícita, consideram a realidade como fixidez e permanência. Temos aqui, tanto o idealismo clássico (não hegeliano), como a tradição empirista-positivista e seus desdobramentos mais recentes: o funcionalismo, o neopositivismo, o empirocriticismo, o empirismo lógico, o empirismo crítico e tantas outras derivações secundárias.

A dimensão de reprodução, permanência e fixidez da realidade social tal como se manifesta no senso-comum, é a base orgânica imediata da ideologia dominante. Ela emana das próprias relações sociais, nas quais, bem ou mal, os indivíduos devem inserir-se para viver. Trata-se do obstáculo ideológico mais difícil para se pensar dialeticamente. É o que Kosik chama de "pseudo-concreticidade" (8) , atribuindo-lhe, ao que nos parece, um caráter unilateralmente epistemológico, numa dialética abstrata com seu oposto, que seria a teoria. Sem perceber, portanto, que à ideologia conservadora se opõe ideologia revolucionária, perfazendo, desse modo, uma dialética de mediações e transições até o patamar propriamente teórico.

De qualquer modo, para a questão que ora nos interessa, basta dizer que, para viver numa sociedade determinada, é necessário (em certa medida) "funcionar regularmente", reproduzir atos cotidianos e elementares conforme essa sociedade. Isso cria a chamada "atmosfera comum da vida", na qual os processos aparecem como um círculo que volta sempre ao ponto inicial e, em conseqüência, a totalidade do social surge como fixa à percepção imediata, como uma realidade a-histórica. Simplificando, podemos dizer que o cotidiano é, se percebido e assumido na sua espontaneidade, antidialético. No entanto, ele pode ser outra coisa, pois o cotidiano não é necessariamente puro automatismo e espontaneidade sem reflexão e crítica. Quer dizer, ele não é inevitavelmente um cotidiano alienado. Subjacente a essa questão ideológica, que funciona como empecilho ao pensamento dialético, está aquilo que Hegel chamou de "moralidade objetiva" e que, não obstante, ele entendeu apenas como manifestação da dialética do "espírito" e não como seu obstáculo mais íntimo.

Dificuldade teórica

Se na superfície do mundo histórico, no presente em que somos obrigados a viver e a nos reproduzir socialmente como indivíduos, necessitamos de pensamentos positivos e funcionais, para compreender a dialética substancial, é preciso ultrapassar essa "casca" do mundo na qual os fenômenos aparecem em sua imediaticidade. Trata-se de descer ao fundamento dialético, quer dizer, fazer uma espécie de regressão teórica para o concreto que, ao contrário do que parece, está no fundo, invisível aos olhos e ao tato, e não na superfície. Por isso, visível somente através do conceito e da teoria. Aí entra a necessidade da acumulação de conhecimentos teóricos para penetrar na dialética substancial e revelar a essência concreta da realidade. Dessa forma, a sociedade, homogênea em suas aparências, eterna em seus ciclos repetitivos, vai se revelar como realidade histórica, totalidade em autoprodução e desenvolvimento, mundo humano feito pelos homens. Por isso Marx afirmou que, se fenômeno e essência coincidissem, não seria necessário a ciência. Portanto, é preciso estudar, refletir criticamente, apropriar-se dos conhecimentos acumulados para aplicar fecundamente o método dialético.

Dificuldade "psicológica"

As determinações anteriores, que obstaculizam o pensamento dialético, tendem a se manifestar numa contradição que aparece como evidente. A contradição entre o mundo vivido imediatamente pelos indivíduos, como realidade empiricamente dada, e o método dialético como apreensão histórico-social dessa realidade, não apenas em tese, mas efetivamente sob o ângulo da práxis. Como algo que está se fazendo objetivamente, enquanto totalidade, mas de cujo fazer podemos participar como sujeitos conscientes.

A dialética, então, aparece como "desordem", "indisciplina", "insegurança" e, sobretudo, "medo". Abre-se, por isso, um abismo entre a ideologia revolucionária que pretende pensar a realidade como dialética, por meio do marxismo, e, de outro lado, a dificuldade dos revolucionários para pensar essa dialética e, principalmente, para pensarem-se nessa dialética.

Para liquidar o capitalismo e transformar o mundo numa direção humana são indispensáveis mediações orgânicas, partidos, sindicatos, associações, acordos, táticas, estratégia, disciplina, hierarquia, enfim, é imprescindível uma determinada "ordem" para potencializar a ação das classes, dos segmentos de vanguarda e dos indivíduos. O sujeito que pretende mudar o mundo numa direção revolucionária não pode, simplesmente, em solene e bom tom, declarar as cláusulas da dialética universal. Pois se é um fato, como vimos, que a própria realidade natural está em movimento independente e anterior à nossa atividade e consciência, o sentido humano da transformação só pode ser dado por nós, nossa consciência e ação organizada.

Nesse processo, em virtude das mediações particulares que potencializam nossa ação, somos sujeito e objeto, meio e fim, causa e efeito. Se não formos como os idealistas em filosofia, que normalmente acreditam numa evolução histórica com base num desenvolvimento essencialmente linear da dimensão ético-cultural da sociedade, e tampouco "revolucionários" meramente contemplativos, temos que nos inserir em estruturas de ação organizada. Mais ainda, sabendo que essa necessidade assume radicalidade inusitada no interior do capitalismo, o qual não patrocina espontaneamente uma base orgânica para a práxis conseqüente de sua destruição e substituição pelo socialismo. Essa base orgânica para a reprodução ampliada da teoria e da prática revolucionária tem de ser posta livremente pelo sujeito, como intuiu Lênin com sua tese do partido de vanguarda.

No entanto, os indivíduos revolucionários, mesmo quando se repõem numa totalidade orgânica, sob o ângulo da imediaticidade, tornam-se objetos e não sujeitos, meios e não fins, efeitos e não causas. Ou seja, o pensamento espontâneo que emana das estruturas de ação coletiva, inclusive do partido de vanguarda de tipo leninista, na imediaticidade de suas relações auto-reprodutoras, é sempre parcial, de adaptação e integração. E o que é mais grave, isso coincide plenamente com o senso-comum socialmente dado. O sujeito é vencido no meio do caminho: integrou-se organicamente para transformar o mundo e transformar-se e tornou-se um elemento fixo, pouco crítico, nada reflexivo, que não modifica sequer a si mesmo. A dialética universal passa a ser um horizonte místico e distante. Sua função nela se media por um pensamento que simula grandeza através do discurso formal, mas em conteúdo é parcial, mesquinho, utilitário e manipulatório. E na reprodução orgânica, ele próprio, o manipulado, se torna um manipulador: a ordem, a autoridade, a hierarquia, a disciplina e as formas tornam-se fins ao invés de serem reduzidas aos meios que nasceram para ser. Eis aqui o que podemos chamar de círculo vicioso da mentalidade burocrática. Mas assim como o cotidiano não é inevitavelmente uma dimensão alienada da vida, exceto se deixado na sua espontaneidade corrosiva, muito menos as estruturas constituídas conscientemente para a práxis revolucionária serão inexoravelmente a negação de seu propósito. Quando Lênin acentuava constantemente a necessidade da crítica e autocrítica dentro do partido, da luta ideológica e do permanente desenvolvimento teórico, ele estava percebendo, no plano da política orgânica, a necessidade de vencer a espontaneidade do pensamento alienado que é reproduzido, naturalmente, pela imediaticidade das estruturas de ação.

Traços do método dialético

Podemos, agora, sintetizar alguns traços mais gerais do método dialético que não ficaram suficientemente explícitos:

1. A dialética se propõe a revelar "a coisa em si" do objeto. Isso implica em dois aspectos que se relacionam. Em primeiro lugar, aponta que a dialética quer desvendar internamente o objeto, o movimento e as conexões que emanam do seu interior e constituem sua concretitude. Em segundo, que a dialética não acredita que os objetos sejam incognoscíveis, ou seja, que contenham um segredo íntimo, o qual jamais poderia ser revelado. A dialética crê nas possibilidades plenas do conhecimento, embora considere a verdade como um processo infindável que tem na práxis o seu critério.

2. A dialética supõe a existência de uma inter-conexão universal e estruturada. Seu ponto de vista, por isso, é o da totalidade. A realidade é apreendida como uma totalidade concreta, isto é, algo que está se autoproduzindo como um todo dotado de certa estrutura interna.

3. A dialética envolve dois esforços simultâneos, opostos e complementares: separar e analisar a totalidade percebida, depois unir e refundir racionalmente as partes numa totalidade concreta apanhada pelo conceito.

4. A dialética contesta o chamado "princípio da identidade": ela afirma que uma coisa não é somente "aquilo que ela é", mas também o "seu outro", que ela não é. Ora, se a realidade é efetivamente dialética, uma coisa deve ser, a cada instante, também a sua negação.

5. Para a dialética, não há um fosso intransponível entre quantidade e qualidade, pois um se transforma constantemente no outro. São duas categorias que implicam em duas faces ou dois momentos do movimento, ou seja, a acumulação e a ruptura, a evolução e a revolução.

6. As coisas, em seu movimento, contêm um processo de diferenciação interna que se manifesta, necessariamente, como contradições. São estas as fontes de energia para a totalidade em seu desenvolvimento e transformação. Mas os contrários estão unidos, a realidade é uma "unidade de contrários", pois é dessa unidade que surge a estrutura da totalidade.

7. O movimento e a transformação conduzem à superação e não ao desaparecimento completo daquilo que deixou de existir. Como disse o poeta, "de tudo fica um pouco". E de fato, já vimos que, no interior do próprio fluxo, persiste algo que dá conexão e concreticidade para os momentos sucessivos da transformação.

8. O método dialético, enfim, é uma espécie de "tormento do espírito", não obstante seja um tormento desejado e consciente. Ele se pergunta, a cada instante: que nascimento anuncia o que está desaparecendo? Ao perguntar isso ele se coloca dois pressupostos: a) O que está nascendo não é algo arbitrário, completamente inesperado, pois mantém um nexo com o que está morrendo e cedendo seu lugar. O pensamento pode, em certa medida, prever o que está nascendo se compreender a totalidade do fenômeno em seu desenvolvimento anterior e suas contradições atuais. O que está morrendo, então, não desaparece sem deixar vestígios, ele morre e passa a viver na substância do outro e, assim, deixa sua herança, mas não é mais ele. b) O que está nascendo não é o que morreu sob outra forma, já que aquele morreu efetivamente. Assim, há algo de surpresa real, inesperado, que nunca pode ser previsto e compreendido inteiramente antes de aparecer. E mesmo depois, a compreensão é relativa e provisória, pois não sabemos integralmente o que o novo vai deixar ao tornar-se velho e sucumbir. Não fosse assim, uma filosofia genial poderia apreender, de uma vez por todas, a realidade em todos os seus desdobramentos.

Do medo à dialética

Talvez não seja por acaso que o humor geralmente envolve uma contradição evidente ou uma surpresa, isto é, a produção de um significado completamente novo e imprevisível num contexto familiar ou cotidiano. O imprevisível nascendo do previsível. A surpresa interrompendo a rotina. O novo que sequer se anunciou e, por isso, cria embaraços nos personagens e o riso crítico no espectador ou no leitor. Nesse sentido, rir de si mesmo talvez manifeste realmente sabedoria ou, pelo menos, uma vaga predisposição dialética indicada por uma latente disponibilidade autocrítica.

De qualquer modo, a dialética como método não é só um "tormento do espírito". Compreendê-la e ajudar a construí-la no sentido da humanização, através da história, é uma tarefa elevada que implica uma satisfação legítima: aquela que emana da luta que o sujeito empreende para transformar a realidade, construindo-se nesse processo.

O caminho que vai do medo até a liberdade, do ponto de vista do indivíduo que pretende ser revolucionário, passa necessariamente pela dialética: como ontologia centrada na práxis, como pressuposto da objetividade dialética no interior dessa ontologia, como método e insubmissão diante do mundo que está aí e de seu curso natural e espontâneo.

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